Tem graça partir o pão com qualquer tosco e deixar as migalhinhas cair na toalha vendo o acaso abrir-nos o apetite, criando uma espécie de intriga. Assim, acabava de cruzar-me com um texto que foi fazendo eco e ganhando vigor quando lia os recados, ponto por ponto, deste senhor. “Dizia Bíon de Borístenes, filósofo antigo: é impossível agradar à multidão a não ser transformando-se num pasticho, ou num vinho adocicado.” E registo que, a ver se tomava balanço, o nosso psico-néscio puxou da mão do Virgílio Ferreira como de uma colher de pau para mexer um pouco antes de me servir o caldo de um diagnóstico de narcisismo. Nisto, algum já se poupou na consulta, não é doutor? Mas devo aqui precatar-me: ou contrato eu próprio as coristas, os músicos, largando uns cobres para assegurar a diversão, ou, se me fico, sopro e sorvo essa sopinha, então bocejo e vou dormir mais cedo. Ora, se assim for, é natural que o público se sinta uma vez mais intrujado, achando que isto das rixas entre os das letras é coisa para ter morrido no século passado. Mas vendo-vos desse lado em tais dificuldades, coço com o dedo o queixo, a ver se vos dou a dica. Chego a desenhar-lhe uma cruz. "Anda, bate-me aqui." Está tão aborrecido isto que me solidarizo convosco. Salto para esse lado da barricada por um momento, a ver se as coisas se equilibram, e dou-vos uma mãozinha, sugerindo o tipo de projéctil que escavaque algum órgão vital na passagem, levando-me àquele sorriso de quem se sabe perdido diante do inimigo. Pois então, sem lhe deitar vinho adocicado, pois não me convenço, ao contrário daquele estarola, de que assim vá melhorar a receita original, e com a tarefa de atirar sobre mim mesmo, deixem que cite um dos “Pensamentos” de Leopardi na edição primorosa que saiu aí há uns meses pelas edições do saguão: “Vi em Florença um indivíduo que, puxando à maneira de um animal de tiro, como ali é costume, um carro carregado de trouxas, avançava com enorme sobranceria gritando e ordenando às pessoas que lhe dessem passagem; e pareceu-me a imagem de muitos que vão por aí cheios de orgulho, a insultar os outros, por razões em nada distintas daquela que causava a sobranceria no tal indivíduo, isto é, puxar um carro.” Aí está uma coisa que me faria tremer, e dispensando severidades clínicas, exames, seringas, picadas... Só que em vez de uma bata e estetoscópio saiu-me um pressuroso agente da velha atmosfera de estupro maila sua terminologia ridícula. Então, só posso benzer-me... É que ainda prefiro um padre que me persiga, querendo dar-me a toda a hora a extrema-unção, a essa espécie de crápulas e intriguistas diplomados (Artaud). Voltando lá atrás, à tal arte dos insultos, preferia que falássemos numa artesania, e vincar que não se trata só de projectá-lo, mas que o escarro deve ser raspado das profundas, trazer nele a substância que liberta a mosca que trabalha para fazer descer a alma às coisas do mundo. Sem isso, fica difícil injuriar gloriosamente seja quem for. E parece-me que sim, que estamos condenados a esgrimir por meio de citações pois já se escavou entre os dois um fosso inultrapassável. Retiro, por isso, mais do que este eremita papa-moscas possa trazer-me já entre aspas do que admitindo, por mera hipótese académica, que o que tenha a dizer-me neste particular possa algum dia, pelos seus méritos, vir a ser reproduzido entre aspas. Farejando nesse senhor a pestilência de alguém que se julga municiado de argumentos científicos para querelar, dar-me-á um treco se volto a sentir esse cheiro a fritos de quem brande argumentos de autoridade nestas coisas, saltando por cima de todas as descortesias que ainda tínhamos à disposição, para se lançar nestas núpcias-relâmpago, a tirar-me as medidas para uma camisa de forças enquanto me diz o que vem no DSM-IV. Mas a pobreza de recursos já na adenda ao post anterior ficara à vista ao tratar como “verborreia” uma prosa em tudo superior à sua. É que essa chacha tem que se lhe diga: já a ouvi um par de vezes, e sempre de escribas de muletas, que mal se têm de pé nestas trocas e depressa pedem para trocar de campo, deixando o literário por outras vias, como quem veio para a guerra armado de uma fisga e, achando-se diante de uma horda rindo e salivando, munida de chibatas, arpões, baionetas, espingardas, afinal manda cancelar a festa. Ainda temos a acusação de "vaidade". E é nestas alturas que qualquer esperança de que este rastilho molhado ainda possa acender dando uma polémica memorável morre de vez, ficando claro porque o meio literário, no seu azedume, está tão desasado. Faltam-nos actores que saibam representar dignamente esta classe prometida à extinção: a dos bons velhos literatos. Daí a bandalheira que leva a que se preencham as vagas recorrendo à mole de moralistas que abunda em qualquer época. Em consequência, é natural que nos venham com espadas de pau e insultos não melhores nem mais sofisticados do que esses que se trocam no trânsito. Que lhe dá no estilo barroco, e esconde um pensamento indisciplinado, ainda abusa nos clichés... Claro, claro. Suponho que cliché seja uma categoria bastante flexível, do mesmo modo que, na rede de um pescador, tudo o que não seja sardinha é outra bota. Ainda diz que deste lado ladramos, mas sem morder... Mais pontos, aqui, pela originalidade! Face a isto, de que me serviria agora encher o peito e dizer, como Victor Hugo, que tenho a honra de ser um homem odiado? Até porque, como o patego afiança, a ti que estás vivo podem muito bem preferir-se tantos mortos. Desde logo um Pacheco, um Herberto, e mais e mais. É como se os mortos, ao serem chamados, formassem fila atrás dele. O que eu gosto da elegância destes que vêm para a literatura deixar flores à pedra das sepulturas para que as mastigue pela eternidade fora. E é claro que o nosso psicotonto não deixa de admirar estilos rebuscados, do teu especificamente é que não, e se veio a terreiro, foi por dever profissional, trazer de volta algum bom senso. Quanto ao que ficou para trás, desdiz-se, é sempre esse, aliás, o mais fácil dos recursos estilísticos. E dada a delirante confiança do paciente, só resta abolir por completo estilismos, subtilezas, invenções linguísticas, brasões, e apontar o caminho para o asilo. No fim desta charada, se não posso reconhecer nem averiguar do percurso ou dos feitos da personagem que me interpela, o mais curioso é como o ilustríssimo prosador dominical (que a pratica à missionário) também se acha à altura de formular um parecer a respeito da poesia portuguesa contemporânea. Ah pois, lá no café também gira o polegar para cima ou para baixo ditando a sorte da caterva de bardos que não atingem o génio - "Não é Herberto quem quer", diz-nos o palonço que há dias arrancava uma dessas prosinhas bem molestas mas que, certamente, o enchem de orgulho, com esta jóia da narrativa moderna: "As crianças olhavam incrédulas para os rapazolas libidinosos". Agora o ponto em que a desonestidade nos dá aquele arrepio próprio de uma assombração um tudo nada genérica é quando, para enterrar o punhal onde julga que tenho o fígado, me confunde com a maralha, porque afinal sou apenas outro desses arganazes das letras a fazer-se valer de alianças e intrigas para tratar da vidinha. Aí está o que há de pior na liquidez de critérios que permite sempre alterar o género da fita à última hora: de um thriller passa a comédia, zás, numa típica inversão por pirraça. Assim se avalia entre nós a mediocridade contando com todos esses que, cada um pelos seus motivos, fazem fila para o programado linchamento literário, e nos roubam às evidências, negam o valor a quem o tem e até contrariam essa "coragem inútil" que tanto ódio motiva e que é, afinal, a grande cola num meio literário a que falta outro eixo. Assim, e uma vez que o campo de honra está vedado a duelos com badamecos, só resta retomar a leitura, limpar o chão com o lençol que cobriu aquele triste fantasma e sair de cena citando uma vez mais Leopardi: "Ou muito me engano, ou é raro no nosso século a pessoa geralmente louvada cujos louvores não começaram na sua própria boca. Tanto é o egoísmo, e tanta a inveja e o ódio que os homens têm uns pelos outros, que, querendo ganhar nome, não basta fazer coisas louváveis, é preciso ainda louvá-las, ou encontrar - o que vai dar ao mesmo - quem as apregoe e as engrandeça, entoando-as com voz forte aos ouvidos do público, para obrigar as pessoas, seja mediante o exemplo, seja pela audácia e a perseverança, a repetir parte desses louvores. Não esperes que espontaneamente digam uma palavra pela grandeza de valores que tu demonstres, ou pela beleza das obras que realizes. Olham e calam-se eternamente; e, podendo, impedem os outros de ver. Quem quer elevar-se, ainda que por virtude verdadeira, deve banir a modéstia. E neste aspecto o mundo assemelha-se às mulheres: com pudor e com reserva, dele nada se obtém."
terça-feira, maio 14, 2019
Uma malga de sopa
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