quarta-feira, abril 17, 2019

Elogio de João Paulo Cotrim


É difícil não escrever uma sátira, ou, difficile est satyram non scribere, se preferirem no original. Deste tempo, podia dizer-se que mostra especial carinho por canalhas. Mesmo assim seria ingénuo esperar requinte das manobras das nossas ratazanas, exigir grande elaboração nos esquemas que mantêm nas queijarias da cultura. Não faço fila entre os que se acham mal servidos. Podia até repetir o que há muito se diz de serem estes tempos obstinadamente interessantes. Se vamos ser sinceros, boa parte de nós estará com Cioran ao admitir: “No Paraíso, eu não me aguentaria nem uma temporada, até nem sequer durante um dia.” Pela minha parte, não deixo de admirar esse talento teimoso dos que se aguentam há décadas nesta zona que a peste não larga, e onde a bomba cai desde que nos lembramos, deixando tudo em cacos. Não se passa um dia sem catástrofe. Mas os anos passam e eles vão-se arranjando, provando enorme resiliência. Há aqui um instinto fabuloso, um talento para sacar a última gota de um hospedeiro moribundo. Além do mais, de que nos vale essa fita do indignado, pôr aquele ar muito consternado, agitar o leque, fingir que não se acredita. Nesta época, só deposito alguma fé nos crápulas. E sim, depois das explicações do Cotrim, se quisesse fazer estalar aquela pose do injuriado, toda aquela dignidade de quem diz que cumpriu com tudo, e até desafia os adversários a arranjarem provas dos seus ilícitos, se o quisesse, bastaria lançar sobre aquela cabecita a frase com que Agustina resume as coisas num raio: “E um crime continua a ser crime, mesmo quando ele fica submerso nas nossas pequenas fraudes de negligência e na participação numa falsa normalidade pública.” Mas não, não vale a pena apelar ao discernimento nem à inteligência, não há jeito de se fazer do Cotrim um aristocrata da pulhice, o homem não tem pergaminhos para tanto. De resto, até acho que o engolíamos melhor se se libertasse do elogio destrambelhado que incessantemente lhe tece a sua trupe de sequazes. Era bom que se desfizesse da rastejante moralidade com que se exibem uns e tantos como pais de família da edição independente. A verdade é que somos pobres. Não dá para grandes programas de engenharia social ou cultural, só dá para aguentar este motel ordinário na beira de uma estrada para nenhures, com os quartos arrendados a um bando de escribas comichosos, sicofantas, taralhoucos narcisistas, nada de muito tenebroso, o catálogo das espécies e do ranço que dá brilho a um abismozeco comovedor. Num certo sentido, e é aquilo que aqui se defende, devemos até apreciar os esforços desta congregação de badamecos, deste editor que faz um belo trabalho a resgatar para o seu circo artistas desses que definham aguardando pelo abate nos canis municipais da cultura, ensinando-lhes aquele modo piramidal de se concertarem, irem pelas terriolas erguendo a pulguenta tenda, e convencerem-se de que estão a levar a cabo uma revolução coperniciana na cultura, como defendia, aqui há uns anos, um deles. Neste ponto, vale a pena lembrar o que dizia Kafka, esse bruxo das letras: “Quanto mais cavalos tu atrelares, tanto mais depressa a coisa vai – não, está claro, o arrancar do bloco dos seus alicerces, o que é impossível, mas o rasgar das rédeas e, portanto, a correria vã e divertida.” Esta vã correria larga ecos transumantes entre nós, um cheiro de transpiração louca, e alguns até já falam disso como de um perfume, sinal do muito que se afadigam com essas utopias da patética sabujice que se refastela “numa boa”. Não deixa de ser curioso ler o Cotrim cronista, com a habitual prosa perna-de-pau, e os ombros cheios das cagadas dos papagaios que vão e vêm, e que, por uma vez, faz a defesa da sua manchada honra, poupando-nos a mais um relato do programa das festas, as aventuras de um empenhado dinamizador cultural acorrendo aos desoladores anfiteatros das nossas províncias, de norte a sul, esticando as pontas do mapa, com o “Povo” a acorrer para ser instruído pela sua equipa de neo-evangelistas. E se “o espectáculo do homem cansa”, como bradava aquele filósofo que entrou por aí empunhando um martelo, nada como esta comédia a la carte com as suas personagens roídas pelo nada e a sua incandescente euforia para nos fazer esquecer a sensaboria do nosso drama. Atente-se neste texto saído no “Hoje Macau”... Por esta hora, lá nos casinos, estão as slot machines ao abandono, e, de olhos em bico, como merecem ser lidas as lamúrias seculares de um honrado editor, está tudo a ler a crónica, e a pensar quem raio vem a ser este João Pedro George, um patusco que teima em vir investigar como se têm arranjado Cotrim e outros dos nossos providenciais mestres de cerimónia, vindo assim, este George, criar mau ambiente, lançar suspeitas sobre gente que há-de ser enterrada de pé, lembrada duas ou três vezes antes de ser esquecida, como nós seremos à primeira, uma gente que fez de tudo para libertar-nos das rotinas do palhaço pobre da cultura, para nos oferecer umas palhaçadas com ar sumptuoso. Afinal, que mal tem se nos últimos vinte anos o Cotrim soube ir buscar mais de trezentos mil euros ao erário público em contratos por ajuste directo? Até me parece pouco. Só em rações para todo aquele canzoal que o homem vai recolhendo já deve ter dissipado pelo menos o dobro disso. O George, armado em traquinas, só mostra com isto que nunca pagou jantares aos amigos. Mesmo se ainda lhe caiu nas veias alguma gota de sangue azul (diz a Wikipédia, e faz questão de repetir o Cotrim, que o tipo é sobrinho-bisneto de um Visconde), a coisa acabou tão mal misturada que o tipo saiu um grande sovina. Nisto, é natural que o editor da Abysmo sinta que o país tem sido ingrato. É pena que o escreva em vez de ter feito alguma performance lendo o cancioneiro do queixume no “Povo”. Aquelas frases todas carcomidas pela pontuação, num excesso que parece gaguez, frases que ficam soprando fininho, deixando fracas ondulações, desajeitando o idioma, como para turvar-nos a consciência. É chato que os editores que aí andam mais impantes, ao subir à letra de forma parece que descem, ficam meio tuberculosos quando escrevem. Tossindo muito, cuspindo bocadinhos do pulmão. Até dá pena. O leitor por uns momentos vacila na alta consideração que lhes tem. Mas depois lembra-se que estamos nisto pela vontade de rir que nos dá. E a pouca coisa acho mais graça do que imaginar o Cotrim dobrado sobre alguma mesa, quem sabe na margem de alguma daquelas apresentações de livros, a cabecear a bola de pingue-pongue do tédio, e a congeminar uma frase como esta: “Aliás, o mais insidioso, que me obriga a defesa frustre perante ataque soez, é o sobrinho-bisneto não afirmar nada. Insinua com a elegância do ‘elefante no nenúfar’ (aspas, ver abaixo).” Fui ver lá abaixo, não vi nada. Mas gostei da ameaça. Um tipo que estava a ler o texto ao meu lado, e que estava a ficar com pinta de chinês, por causa da prosa, ao ler esta passagem, um tanto desconsolado dizia-me: Era bom que mandassem um pergaminho lá de um mosteiro encravado algures na Idade Média a pedir de volta ao Cotrim o vocabulário. Desta já eu não me ri tanto, mas achei imensa graça quando o pobre do Cotrim, qual Bocage tentando desenvencilhar-se da sanha dos seus adversários, lá mais para baixo nos alerta para uma nova inquisição que anda para aqui montada, com um estilo de ataque aprendido nas páginas do “Correio da Manhã”, e que adora santos que “pagaram na pele o preço do dito e do feito”. O texto é uma espécie de cardápio do atabalhoamento que vai no espírito caluniado deste editor que se lembra de citar um amigo “querido”, que escreveu esta máxima digna de ser cravada à entrada dos nossos tribunais: “a honra ainda é um valor e ainda há juízes em Berlim”. E eu pergunto e bolas, há? Cotrim, o ofendido, que faz questão de nos relembrar que tem editados mais de 140 títulos, e que nem 10% resultam de parcerias, não deixa passar a oportunidade de uma vez mais puxar do cartãozinho de independente, agitá-lo nas nossas ventas, e enquanto nos perguntamos “independente” do quê, ainda nos espeta com uma esquerda de fininho, um ferrão directo aos rins, dizendo-nos que é, ainda por cima, um romântico. E, não sendo ele pai, compadece-se das filhas de George, por terem de conviver “com gente desta cujas janelas dão apenas para o nevoeiro”. Ainda solta um beijo, “com dedo de permeio”. Digam lá se não é um privilégio ver a língua esgrimida com tão sagaz e feroz desenvoltura. O honrado editor não sai de cena, no entanto, sem nos dar as últimas sobre as suas andanças com os tarecos pelos salões, e não me canso de rir da forma como os nomes surgem sempre muito próprios seguidos dos apelidos enfiados na gaiola de um parêntesis recto, para que o leitor saiba que o vínculo entre os ‘manos’ dispensa formalidades, mas também não se confunda entre o rol de personagens secundários e figurantes que vão entrando nesta metaficção. Cotrim diz-se piegas, diz que se comove com o divertimento que ele e os seus mariolas erguem. E acaba a enrascada crónica como um justo, com um poema que não escreveu, mas, até melhor: traduziu. Assim, e se não há meio de fintar a maldição, a porca realidade que nos cerca, ao menos temos este campeonato de inversões canhestras com que nos entretermos, e não há outra coisa a fazer senão rir, rir alto ao pé de muita gente. Não há maneira de fazer sentir a estas mentalidades festeiras, viciadas no programa da feira cabisbaixa, que esta porra é ainda mais triste por se tratar de um microcosmos, em que tudo afecta a todos, e a bardinagem de uns sai, naturalmente, cara aos demais. Não há meio de fazer entender que estas momices, estes jeitos de bandalho que vai a todas, este princípio gregário de se criar esquadrões para o saque dos esqueletos como se fora uma caça aos gambozinos, e o atrevimento de se enfiarem nos mausoléus, fazerem ali piqueniques, este gosto pelo pandemónio, obriga quem está de fora a mexer-se, defender uma linha qualquer, por mais recuada e mesmo que a contragosto, para que não fique de todo empestada esta condição. Está muito contente este paquiderme da nossa edição em acabar-se por aí, desfilando como independente, quando não faz mais que imitar, numa redução à escala, os compromissos com um modo de se esgotar tudo, capitalizar, empanzinar, gastar à tripa-forra. E quem vier depois que se lixe. Pois terminemos citando um poeta, este uns furos acima do que ele traduziu: “Qualquer homem poderá talvez sentir uma espécie de mágoa, ou pavor, ao constatar como o mundo e a sua história se mostram entregues a um inelutável movimento, sempre expansivo, e que só movimentos cada vez mais grosseiros modificam as manifestações visíveis desse mundo. E o mundo visível é como é, nunca através da nossa acção chegaremos a transformá-lo noutro. Nostálgicos, porém, sonhamos um universo onde o homem em vez de agir tão furiosamente sobre a aparência visível, se aplique no destruí-la”... (Jean Genet, “O Estúdio de Alberto Giacometti”).

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