segunda-feira, fevereiro 25, 2019

IR CONTRA AS CORRENTES


Em que medida o público de massa dos ‘grandes eventos’ culturais mudou os próprios comportamentos e as próprias escolhas na sua relação quotidiana com os livros? Consumir uma noite literária pública é mais fácil do que consumir, ou seja, ler e entender, um livro. Os livros são distribuídos triunfalmente pelos jornais. Mas quem distribui o tempo e o hábito para lê-los? Porque é que a venda dos livros de poesia permanece estável em níveis baixíssimos, mesmo que há décadas as leituras públicas de poesia estejam lotadas? É lícito pensar que o como prevaleça sobre o quê. A forma do consumo efémero e rápido, a transformação da mais complexa cultura num espectáculo de uma noite, reduz o chamado património cultural a pó dourado e a vago aroma. Que relação existirá entre a frequência dos estímulos culturais e a capacidade de assimilação? O frigorífico cultural está sempre cheio, mas que nutricionista nos dirá o que realmente necessitamos comer? Ainda existe a hora das refeições. Mas quais serão as horas para ler Tchekhov ou Thomas Hardy e fazer algumas anotações? Ter visto a cara do autor enquanto recita duas páginas de um dos seus livros fará que compremos o livro ou dar-nos-á a impressão de ter lido as suas obras? As manifestações culturais divulgam a cultura. Mas conseguem comunicá-la? 
(...) 
Digam vocês mesmos se este fenómeno não parece actual. Os ‘clubes exclusivos, mas de massa’ estão a multiplicar-se. A multidão precipita-se em busca de distinção, acreditando que está a experimentar emoções secretas, raras, únicas, extremas. Mas, se a cultura quer dizer também imaginação e coragem, capacidade de fazer por si mesmo, de ir contra a corrente e de enfrentar a angústia, nesse caso as praças e os circos não são os melhores lugares para encontrá-la.

- Alfonso Berardinelli
(in Onde foi parar a indústria cultural) 

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