quarta-feira, janeiro 23, 2019

Homenagem aos Saloios: O poeta que foi comer raia a Paris


O Pacheco, que conseguia escrever livros inteiros sem uma só ideia (Eduardo Prado Coelho dixit), e isto fosse de crítica, fosse na mais cerrada guerrilha, cantigas de escárnio e mal dizer muito por extenso, se não tinha ideias, como acontece aos doutores, sempre ia fazendo uns belos achados, era um destemido explorador dessas profundezas que estão mesmo à nossa beira, e que, por preguiça, desinteresse, para não arranjar chatices, a maioria dos literatos ignora, faz que não é com eles, como se pudesse ler-se alguma coisa sem especular minimamente, sem examinar as propriedades rochosas de um certo uso gramatical... Mas vá: um dos achados pachequianos que mais utilidade tem para quem se debruça sobre estas coisas, e que as estima um pouco, não vem com um alto desprezo, que é coisa senhoril, chamar-lhe vidinha (“um certo mundinho por vezes crismado de ‘meio’”, dizia o panhonha do Pinto Santos) do alto de uns cavalos, numas distâncias apatetadas de quem se julga superior, nem vem logo com a enxúndia, até porque quem ama odeia, e quem não odeia só acha bem ou menos bem, acha curioso ou pouco interessante. (E já há dias trouxe aqui para nossa comum instrução a frase de Agustina, ratada do livro “Embaixada a Calígula”: “Mas quando foi que a cólera, o azedume, o desencanto perante os nossos semelhantes significaram tão grosseiramente pobreza de coração e desventura amorosa? Os que muito acusam e exigem não são os que mais amam? São, com certeza. Quando um homem bate as palmas e solta exclamações lisonjeiras, está mais perto de ser um banal caçador de emoções, do que um parente próximo da verdade.”) Perdi-me... Dizia que esse achado pode fazer-se nas cartas dirigidas a António José Forte, onde, entre outros projectos literários, uns concretizados, outros falhados, “destinados a não passar da declaração de intenções”, como assinalou João Pedro George numa recensão àquele volume, damos com a “Homenagem aos Saloios”. Ora, há uma carta escrita a 12 de Junho de 1961 que nos faz ver pelas garrafais lentes dele a questão: “artigos vários sobre os saloios vários: os saloios na imprensa, no teatro, no cinema, na literatura, etc. Os saloios, como sabes, somos nós todos – vistos de Paris. Mas entre nós – entre saloios, portanto – há os saloios 100% e os saloios 99%. Nós, propriamente ditos, somos estes. Assim, achamos do maior interesse, por agora e por espírito de picardia, fazermos uma homenagem colectiva aos saloios 100%, os saloios saloios, os saloios de corpo e alma, os saloios felizardos. Tu não podes faltar nesta homenagem. Requere-se pois que mandes prosa ou versos, insultos ou desabafos, em todo o caso o teu depoimento sobre os saloios. (…) Manda prosa. Saloia. Ou anti-saloia. Um abraço saloio do saloio.” E se Paris serviu essa distância que se mede em altura, que nos deu no passado (e ainda hoje, talvez) uma noção da nossa falta, baixeza, ou, pelo menos, das nossas aspirações (já não seria mau), é bom ver, em tempo de manos que são só lelés da cuca, borbulhosos adolescentes aos quarenta, como o projecto que Pacheco propunha teria ainda muito a colher nos nossos dias, quase seis décadas depois... Basta ver esse saloio que veio de Paris há dias, zurzindo a mole humana que se move pelo globo transformando, por efeito do seu movimento, tudo nuns Estados Unidos do Turistão. Sim, já sabemos dos efeitos dessa catástrofe eufórica, mas ele o que lhe acrescenta? Bem, exclui-se, isenta-se, monta o seu álibi... Diz que foi a Paris mas para ver uma exposição, de um desses imperdíveis génios portugueses fora do mundo, contemporâneo dos românticos, como há alguns anos fora ver um concerto de um desses génios que metaforizam a bebedeira e arrumam com a figadeira de milhares de fãs que efectivamente bebem, sem que os seus desabafos sejam arrolhados por qualquer forma de poesia. E então, este provinciano da estirpe burguesa, só lhe faltava trocar os versos pelas prosas mal enjorcadas dos catálogos de exposição, essas em que os lulus organizam as suas montras, nos vêm garantir que é tudo muito fino, muito atilado, fazem um bom convívio e nem se misturam com a ralé. A ralé somos quantos? quem?, pois os que preferem ser nós a desfazerem-se nesse cansativo fio de ecos eu-eu-eu-eu... Safámo-nos de um realismo em fila, tudo ligado por um fio a uma utopia cheia de moscas, e, depois de um período de libertinagem artística, havíamos de dar de novo com um realismo desalmado, uma gente patusca que se julga muito cosmopolita pela aplicação táctica do seu desprezo, e cujas obras, uma livralhada sem fim à vista, é um manifesto da superioridade dos seus vícios, dedicatórios, elogios à tribo... Publicam muito, mas não “publicam” nada. O público, o leitor ou os elege e se elege, ou está com a maralha. Vêm para a literatura com uns projectos de fidalguia, a coçar-se umas pulgas tão nostálgicas, arrotando dissabores que não interessam a ninguém, mas garantindo que o mundo é isto, o resto são delírios e artesanias verbais de ourives de bairro. Sim, o resto é treta, mas nós é que temos de lhes comer as mulheres sem sal, que enaltecem muito nos versinhos durante a semana, para assegurar a foda dominical, pela tardinha, fora isso, vão parindo os restantes versos como maleitas, cheios de horror pela vida e desconsideração pela poesia, mas de um bom gosto, pá, com Bach, gatinhos e whisky envelhecido na garganta dos melhores oráculos. Ó apocalipse chique, nós, simples saloios, sem pedigree, vos saudamos.

Em rigor, só uma pessoa além de mim pode mesmo saber se esta exposição de Alberto Giacometi e Rui Chafes foi efectivamente o motivo ou tão-só o álibi para um regresso a Paris. Tal como, dez anos antes, o concerto de Tom Waits no Grand Rex. Embora vagos, estes indícios autobiográficos talvez ajudem a provar que ainda há grandes razões para viajar, nos antípodas desse nomadismo acéfalo e aleatório a que chamamos turismo. Pode-se, claro, ir a Paris apenas para saborear a raia do Bistrot de Paris ou para sentir de perto o charme decadente do Polidor. Mas a arte, se for autêntica, não procura o deleite, não pretende confortar-nos. Temos, para isso, cruzeiros de luxo, políticos iletrados ou até religiões, quando se deterioram em sistemas básicos de auto-ajuda colectiva. 
- Manuel de Freitas, in revista Electra, n.º4, Dezembro de 2018, Fundação EDP 

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