sábado, novembro 17, 2018


As marcas de uso no mármore
o gesto que aprendo seguindo com os dedos
o antigo delírio dos teus jovens contornos
como o próprio frio esculpe as feições
que eu conheci do fogo
quando de tão vastas as noites era o amor
uma tremenda invenção, quebrávamos os membros
e a eternidade nos parecia desnecessária

não trocávamos mais que o terror de frente
o gosto absurdo crivado de tanta pancada
e o nome depois era uma avidez imensa
das regiões afastadas de um verso
erguia-se a manhã desperta faminta
escrita para uma só boca

a abelha esfomeada que guarda
um poço abandonado
como lhe assenta sobre o ombro o cabelo
como se olha sem ter dentro nem fora
e busca reflectido o espanto na água
em que o outro a viu

não é aos deuses mas a estranhos
que rezamos
da antiguidade guardamos um hábil eco
como testemunham os nossos quartos
estrelas amputadas, álcool, tabaco
a subtil sujeira que fazem
tantos que milénios mais tarde
não se acostumaram ainda à luz
mordem os lençóis vivos
basta-lhes o cheiro, de repente,
e as paredes são deitadas abaixo
como nas cinzas a fábula
as noites ali estão suando
no desembaraço da sua desordem
toco fundamente com os ossos que tenho
mais à superfície, e não tiro sons por muito que insista
nunca o amanhecer esteve mais longe
ou foi mais improvável
sopro a luz e o escuro balança todo
do tanto que li num soluço arrastado
tendo revistado a cidade inteira
aberto todas as portas
e cheirado a sombra de todos os quartos
não posso senão aquecer as mãos no fogo
entre estações, à luz desses textos
em que se me apaga o rosto e nem sei ao certo
de que lado a espreito
entre o pavor delicioso de um condenado
com uma flor desmanchada na boca
os dentes cerrados, cheio de tesão
enquanto o veneno se espalha nas veias


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