terça-feira, outubro 16, 2018


Esvazia o bar, fica lá com os músicos, tu e essa história toda que não tem começo nem onde ir, felizmente há uma certa calma no espaço vazio, as cadeiras, somos poucos, o rapaz limpa os copos, parece um ensaio, também aqui, no ritmo a fazer mira, deitaste as flores no lixo, posso ligar-te amanhã? Não ligo, mas conforta saber que posso, perguntar-me se o farei, virar o copo e desafiar-me a isso, até me aborrecer, pôr um fim ao agonizante romantismo que se esvai com uma mão dentro das calças, e volto à cadeira de pau, entre cada som metálico, quase vejo um campo, como se pedalasse, sinto desenhar-se uma flor alta, cada vez que bato, menos a sequência, a própria frase do que o vigor, a perseguição de um ritmo que me alce, deixe ver por um instante, ser assombrado pelo meu perfeito detalhe. O que acontece a seguir? O que eu detestava que mo perguntasses, que a própria interrupção não fosse o bastante, e como me ficou repetindo isso que talvez nem tenhas considerado bem, pesado como eu depois faria com cada palavra, ao dizeres que há sangue no modo como as conto, eu que nunca quis cair na história, que me sentia a escorregar, incapaz de ter uma cena escorreita entre a sombra que fazia no papel, o gelo no copo, a janela, o tempo sem costura da lua e do sol, mas não consigo tirar as distracções do caminho, sigo-as, cada uma, sou eu quem as persegue, como essas mulheres baixas e magras mas que, depois, ao seu jeito, com um certo encanto imprevisto, se revelam todas capazes de dar cabo de nós. Feições mais delicadas de cada vez que muda de opinião sobre qualquer coisa, te puxa e se desinteressa de ti, como as linhas que outro escreveu e que quase te humilham. Sobreviverás à margem das antigas ambições, até ao dia em que possamos ser cruéis de novo, sem pestanejar. Viver do outro lado, onde nos olham sem a menor ideia, sem uma fresta, nem uma morada ou contacto, mas simplesmente longe do mundo, por detrás da nossa espectacular falha de carácter, sem paciência para ouvir uma vez mais alguém explicar-nos porque deveríamos reconsiderar. Indiferentes para os nossos próprios sonhos, como se mesmo o sentimento não fosse mais do que uma sensação de mal-estar. Mas gosto do teu vestido... Incapazes de perdoar porque das memórias nada nos resta senão um certo desdém por quem fomos, quem se cruzou connosco e se lembra, e até nos teve afecto. As histórias levam-nos um pouco mais longe cada uma, até não podermos mais fazer sentido, tomando-o como uma traição. Nas melhores alturas, calei-me. Não sabes o quanto me arrependo de todas as outras. Se não nos virmos por aí, imagina o melhor. Estarás errada, mas ao menos fazes-me esse grande favor.

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