quarta-feira, setembro 05, 2018


Também a voz nos inferniza, põe-nos na boca palavras que não podíamos ter dito, magoando esse personagem cultivado num fútil e ocioso protesto diante da pequena moral que nos servem. Intervalos, nesgas é o que resta quando não se pode mais conspirar. Em letal minoria, isolamo-nos para fazer lume, nos apaixonarmos por mortos, dar-lhes mais filhos doidos. E estamos nisto, o mesmo uns séculos depois, e o tempo sem melhor que fazer, atirando-se à cara palavras, ditos, impropérios em papéis de acaso, e o que somos nós? Uma gente que encarnamos por desfastio, debruçados sobre livros onde se desmentem uma a uma as brandas ficções de que se cose a vida. Temos um bar nos bastidores de onde nos vemos como um jogo de uma liga secundária no televisor; ao balcão, a garrafa a meio caminho de uma miséria total, e em Seide ou aqui, com Camilo ou algum outro cabrão a assegurar-nos que nem o génio nos salvaria. Linhas frias, sem o menor rasto de emoção, tremendo frente a um monstro de sensações: só osso e nervos, antigas migalhas na caixa de uma bússola e aquela prosa como um continente selvagem e inexplorado, a voz sustida a golpes de catana, avançando a custo, esmagando os mosquitos na pele, numa sopa de humidade e alucinação, fervendo com os gaguejos de miragens. Ágil, estuporado inferno a toda a volta, a vegetação rogando-te pragas, uma loucura incapaz de estreitar-se à conformidade das narrativas. O plano era cruamente simples: aguentar, progredir numa linha minimamente recta contra uma paisagem capaz (finalmente!) de devorar-nos. Passados uns dias nem nomes tínhamos, e a memória atabalhoada punha-se diante de nós confundindo o sonho com as horas acordadas. Como bêbados de nascença, sentíamos os pés entre gengivas e dentes, o chão engolindo o que pudesse, mastigava ou cuspia, montando outro desses lugares onde cada passo que avanças te mete medo. O nosso próprio cheiro adquire uma estranheza fenomenal. Estamos connosco e somos arrastados, perseguidos. A vontade nunca nos convenceu tão pouco. Incapazes de dominar o que quer que seja, a asfixia não nos inquieta mais do que o tomarmos o fôlego e sentirmos entranhar-se-nos na consciência a dimensão de tudo isto. A febre, ao menos, ajuda: ritma delírio e realidade, distancia-nos um pouco. Vamos fracamente, de nervos em franja como tambores blasfemos, a boca amarga, o debate minucioso que nos impõe tudo; apertando a garganta ao desespero, vamos. É o vinho que se bebe nos odres do terror, o riso que se escapa de um e exprime perfeita e consoladoramente o escárnio entre nós, por nós mesmos. Rimos o que podemos, e é como se o destino nos fizesse vibrar. Desfaz-se a culpa - ao menos isso - e tudo nos sabe como uma bala nos miolos, para logo depois termos de limpar a sujeira desse acto derradeiro, rindo alto, de como o absurdo assobia despedindo-se de nós, e do quanto a vista do nosso túmulo nos apazigua.

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