sábado, setembro 08, 2018


"Quem disse as melhores coisas sobre mim foram os meus inimigos" 
Vicente Huidobro


Que seja verdade tudo o que dizem... em algum momento e a ponto de tremer de vergonha, ao mesmo tempo fascinado, mirando essas ficções - um reflexo apurando o gosto ao lume do ódio. Já não podemos transformar-nos em animais como dantes, mas em bestas sem nome talvez, anunciados por uma trepidação que chegue de outras terras, e o que mais se dizia dos lugares inexplorados, antes de qualquer decalque dos cartógrafos, ambientes em que os marinheiros sentiam as entranhas gemer supondo que aí pudessem ver-se dragões. Eis toda a magia que nos resta: como os inimigos se rezam uns aos outros - dores misturadas, rogando-se um acto de absoluta vileza, a roçar o indescritível, nesse limite contra o qual nos abatemos. Depois da conquista dos pólos, faz mais de um século, pelos mais geniais e desonestos suicidas, hoje, com a extinção em curso do que nos aterrorizou no escuro durante milénios, só no terreno da inimizade resta margem para riscar a superfície das lendas. Entre estas gerações definhando antes que tenha início o assalto ao cosmos, olhamos os céus nocturnos e essa vertigem como quem escava em vão a terra, resignados com os cacos de antigas civilizações, um astro fóssil que ao invés de iluminar nos cega... Mas o que temos para expedição onde ensaiar um estilo? O zumbido dos canos atrás da parede desta época só nos sufoca, temos ratos neste pardieiro, superfícies mofadas, barulhos inexplicáveis; o tempo passa por uma assombração, a decadência consome-nos, em vez de uma candeia deve andar-se pelos corredores de faca na mão, a chamar como a um gato, aqui bicho, anda que te fodo; tresvariados da cabeça, a milénios de distância das presas mais notáveis, essas de tão fabuloso porte que as sonhamos em fascículos, ao longo de uma série de noites. Vamos cercá-las nalgum museu, a voz abafada do guia a trautear qualquer coisa sobre a pré-história, a apreciar a perícia do taxidermista que falsificou esse assombro, tacteando no escuro das suas suposições, cosendo as partes de animais da mesma família, dá-nos essa montagem de uma coisa que ainda há pouco estava viva. Fora isso, é a mesma humilhação diária dos nossos instintos em toda a parte pela afamada era da técnica. Temos ainda no vocabulário as marcas de uma terrível refrega, os traumas mais fundos na gramática, um resíduo mágico que pelas palavras nos liga ao prazer de se estar algumas posições abaixo na cadeia alimentar, e, se os versos parecem armas toscas, mantêm a fiabilidade do que poderemos sempre retomar: uma perícia essencial que separava quem viveria, quem fala por frases verdadeiras, ainda que caminhe alucinado, com o ar demencial que toma um arcanjo quando se avizinha de um bairro terrestre. A arrancar a pele do que se diz para que o sentido dê alguns passos por nós, os mais difíceis. Temos noites para essas coisas: estrangular os débeis que só fazem número e atrasam toda a geração, mantendo debaixo de olho as nossas imperfeições, com a ajuda desses formidáveis inimigos que se querem por perto. Tiro o rosto do caminho, procuro dividir-me em sete dias como ensinam os mais velhos, vigiando os avanços da catástrofe enquanto cronista meliante destes estados gerais da javardeira, e, nisto, tiro o pulso a todos esses sonhos de merda, com gente a mais, ponho um espelho frente à fraca respiração da musa, doente, arrastada, exposta como uma triste aberração de feira. Os pássaros cantando pior do que em qualquer outro período da história, ela a tossir e eles a caírem-lhe mortos à cabeceira.

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