domingo, agosto 12, 2018


Lánzate sobre el mar
Separando las olas como el cadáver separa la eternidade
Vicente Huidobro

Ao despir-se, pendurava a roupa do outro lado do mundo. À cabeceira, a flor servia de armário para as roupas dela, chamando a si as abelhas da memória. Estende, feito rede, nas sombras o coração, dissolve dois dedos no copo e é arrastado pelas águas até à canção de amor do que o destrói. Por causa da chuva, por causa do jeito como narra gestos de afogados e, com o mesmo fio paciente, cose a noite, só tem já a espera de si mesmo, o desejo de sumir-se e não morrer. Ir pelo escuro até onde a terra perde o seu ruído, quando só lhe resta a piedosa conta dos nossos passos. Acharão os seus ossos entre os de uma noite maior, com os vestígios do que se tinha por lendas, outra história das coisas, o que foi caindo de mundo a mundo, toda a louça pintada de épocas perdidas, os quartos fechados, odores de oficina, em cada verso vozes, olhares trocados com paisagens aflitas, o timbre dos campos sob o relâmpago, as grandes tempestades. A lâmpada balouça, como se em alto mar, estrela imunda apavorando as coisas. Desenha a raiz das nossas horas demenciais, roídos de lucidez, ébrios de intempérie. As ondas rebentam, o mar ouve-se pela casa, o seu cheiro como de um corpo em lentíssima e suave, eterna decomposição, mas talvez seja só a gota da noite que se descalça no lavatório, canta para a sua própria música. Ainda chove, e é difícil imaginar o que ao amanhecer será retirado do fundo dos nossos passos. (Talvez lhes dê a sensação de que éramos mais, e isso só porque tantas vezes caminhámos em quatro patas.) Interrompido o ritmo solitário, tudo nos atravessa, o vento faz de nós vento, as sombras derrubam-nos. Donos da quietude, do último lance de cada jardim, a terra prolonga-se de rosa em rosa, mas para os outros a nossa será a substância das coisas remotas, a distância que vai do homem à lembrança que serve, a aventura que só partilhou com os deuses extraídos à mais profunda das suas noites.

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