quarta-feira, julho 25, 2018


El sonido es la muerte que todavía resiste
y levanta, sin manos, un gesto hacia lo vivo.
Juan Eduardo Cirlot

De um perfume de flor surge toda uma época, de uma certa cadência na chuva, algumas ruas debaixo da luz certa despertam de novo aquela sombra que nos deu nome. Talvez o som volte, memória ou eco, um fruto mordido algumas vezes, e o caroço depois deixado a perfumar o quarto, como a carcaça de um fauno entre a transparência e a cintilação na hora em que muda a luz. Então, podem ler-se outras coisas, palácios reflectidos na água de um verso, o ar que passa pela boca capta essas coisas invisíveis que, mal se dizem, estão perdidas para sempre. Há ruídos que tomo como indicações para cegos. Ao lado ouço-lhe os passos sem nenhuma ordem particular. A água então já sobe as escadas. Os pássaros que lhe serviram de voo tem-nos agora nos bolsos, mortos. Lá em cima, o gato cobre o telhado inteiro, nada passa por ele. A noite, que foi ágil, aparece hoje abandonada e de mãos vazias. A carne é um espelho e uma estrela. Onde o vidro cresce e rasga a carne rente ao reflexo, a tinta perde luz, escama, o osso cede. Escreves palavras calmas, cada vez mais frias. Como se em lábios suaves recuperasse os contornos, puxando até aos ombros aquele vestido de terra adolescente, esse murmúrio de tantas flores. Se te disser que as oiço ainda. Mas eu conhecia a descrição. Se alguma coisa fosse mudada de lugar já não seria o mesmo mundo. Ali a corrente afrouxa, o rio deixou de ser fresco, digere incansavelmente o pássaro amarelo que roubaste há muito tempo de um quadro. Talvez sonhes com isto, disse-me. As moscas sobre a cama, tantos livros abertos carregando o ar, a presença infame daquele que vive das peças de um milagre destruído. Incapaz de ficar dentro de si, sinto-lhe o cansaço, os olhos com linhas a mais. Levanta-se, apanha os óculos do chão e limpando-os na camisa, pergunta-me: Como se desvia o olhar de um morto?

Sem comentários: