sexta-feira, maio 25, 2018


O jardim familiar (primeira fase do abandono): montões informes de silvedo, buxo descabelado, urtigas, flores selvagens. As palmeiras de pouco porte incharam tanto que fazem pensar em anões velhos, doentes, com as suas cabeleiras, as suas folhas emaranhadas, caindo em arco até ao chão.

Sentado num osso de baleia; para ser mais exacto, na secção média da espinha dorsal duma baleia: cinquenta e um centímetros de diâmetro, trinta e três de altura; duas vértebras abrem-se como as pás (as asas) duma hélice; bastante afastadas, permitem que os cotovelos se apoiem nelas: pondo o caderno em cima dos joelhos, consegue desenhar (não tarda muito, a chuva de verão vai obrigá-lo a entrar em casa). Osso de baleia, textura de madeira pobre, exposta à água, à erosão, sem apodrecer: a luz, quando bate de frente nos veios foscos, desprende uma poalha cor de cinza, quase a reacender-se. A densidade calcária decresce tanto que podem ambos flutuar (a criança e o osso de baleia) sobre murgos biliosos, caules de gisandra, líquenes, doenças vagarosas.

O revérbero entre as nuvens colhe-o de surpresa e extingue-se, mas chega para abrir uma fenda (irreparável) na memória. Então reproduz de cór a paisagem que se vê da janela, cria os seres primordiais, mistura verão e inverno, atenua a cegueira (o excesso) do sol incidindo sobre sílica, mica esmigalhada, vidro moído num almofariz (sabe-se lá), aumenta os grãos de areia até ao tamanho que parecem ter, de noite, quando o vento atira contra as vidraças as suas enormes pedradas. Nisto, a chuva expulsa-o do jardim. Pouco flutuou.

No exterior, a partir das paredes, há dois palmos de atmosfera lúcida, quase luminosa (intensifica-se pouco a pouco): halo a envolver a casa, a protegê-la (?) misteriosamente. Para lá do halo, o ar é escuro, peso que se move e revolve com lentidão. A ameaça a aproximar-se.

Na sala, o homem sentado à mesa de vinhático levanta-se e verifica a janela: caixilhos de castanho, misagras de ferro antigo, sustentam as vidraças cheias de imperfeições (nódulos, bolhas, distorcem a visão), mas duma espessura sólida capaz de resistir.

Preciso de medir a casa. Os quartos, um a um: comprimento, largura, pé-direito. Avaliar a superfície entregue à névoa e os seus pontos frágeis (janelas, portas e postigos). Conhecer melhor o brilho da cera delida ou a sombra que se oculta nas galerias de caruncho; e o pó, as manchas de humidade nos tectos, a serradura interior da madeira. Numa tarde assim, tão cheia de água, registar ainda o fino diapasão das goteiras, a pouca transparência lá de fora, cada vez mais turva: como absorve ela o murmúrio dos móveis?

A fita métrica deve estar na gaveta superior direita da cómoda holandesa, onde sempre esteve; a chave, vejo-a daqui: chama de níquel vacilando na fechadura do último gavetão. Calcular com rigor o espaço em que posso mexer-me, a distância entre as coisas, o sítio certo das cadeiras. Andar altas horas através da casa: às escuras e sem tropeções.

- Carlos de Oliveira 
'Finisterra — Paisagem e Povoamento' [1978], 4.ª ed. (texto definitivo), Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1981

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