"Morre-se e não se faz grande barulho" (Saint-Exupéry). E isto por mais ruidosa que a época seja. Sentença que aos condenados há-de soar doce como um consolo em face das terríveis expectativas que estalam sobre as nossas cabeças. O assobio desse chicote impondo a ordem no circo. Entre habilidades e aplausos, o que houvesse de selvagem degradou-se entre o gozo e o bocejo da plateia. Incapazes de andar a par da nossa consciência, abre-se esta dolorosa bifurcação entre actos e protestos. Cooperamos com tudo o que nos amestra. Numas poucas linhas e em letras pequenas são incendiadas bibliotecas, e os melhores tratados nada podem frente aos sinais devastadores que pesam toda uma época. Que mais senão um riso escarninho se ouve quando, por estes dias, em vésperas da Feira do Livro, a APEL lança de novo a sua desavergonhada campanha em busca de voluntários? Um rito sacrificial dirigido a jovens e desempregados, modalidades actuais do desespero. Não se antecipa assim a derrota de qualquer valor que eleve a actividade do espírito quando a hipocrisia impregna tudo? Por mais livros que se vendam naqueles dias (e mesmo se não nos fosse lícito supor como só uma ínfima parte será assimilada), o que podem as melhores criações do espírito contra algo tão infame se não provocam qualquer insurreição? Numa época em que todo o conteúdo ético, no plano prático, é dispensado como uma ingenuidade, os grandes valores mais não são que ecos desfasados de toda a realidade, uma contrafacção irónica que faz de nós fantasmas habitando a sombra dos nossos ideais.
sexta-feira, maio 11, 2018
Cultura como contrafacção
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