terça-feira, maio 22, 2018

A PROPÓSITO DE PHOTOMATON & VOX OU DE QUALQUER OUTRO TEXTO DO AUTOR


Agora o lugar e o tempo — fim do século, os idiomas, o mundo — são muito estimulantes. A época é literal e conformista. Divertir-se é quase obrigatório. Há juízes, julgamentos, justiças, jus­tificações — há episódios por todos os lados para a gente rir, e depois a gente vai para casa e se porventura conservou limpas as suas fontes entrega-se jubilosamente a confundir a vigência: a gente desfaz e refaz as coisas, a gente diz: inven­ção, imaginação, inovação — e sem dar por isso encontra-se em estado excelso de irrespon­sabilidade social, sente-se responsável consigo apenas. Estou no centro de mim próprio; não me interessa este mundo da justiça de fora, o mundo dos juízes e julgamentos, não me inte­ressam as justificações do mundo: estou só. Leva-se até ao extremo o divórcio libertador, é impon­derável quase o trabalho de atingir o extremo pessoal. Em poucas épocas foi tão simples estar contra tudo, os outros, a nossa facilidade que se mostra nos outros, a tentação dos outros.

Os outros montaram as armadilhas eternas da terra: valores, a consciência dos valores, o seu poder. Se a gente possui uma parcela intacta para cuidar e preservar no meio da violenta, sedutora e corrupta legalidade de fora, a inocência é tão singela como isto: basta exercer-se, conduzir-se na sua obra de inocência. Nem é preciso a ino­cência demonstrar como pode ser assassina: mete-se em casa, escreve as suas palavras. Os outros aparecem e dizem: vamos julgar isto, medalhar isto, tirar a força da regra disto, vamos oferecer-lhe um sítio, e acabou-se. E então a gente pen­sa: que me importa que eles maquinem a sua maneira de me pôr num sítio vigiado? Não sou vigiável, encontrei o meu sítio, a minha inocên­cia, ninguém me tira nada, ninguém me dá nada. O meu poder tem as suas palavras, as palavras do meu poder vivem dentro de si, não estão para fora, não fazem a guerra dos poderes de fora.

A mim parece-me que se não deve ajudar uma coisa destas, uma inocência que resolveu não sair de si para o poder externo. Os tribunais têm de condená-la, desterrá-la, decidir do seu extravio em lugar, natureza e tempo: não é daqui, não é contemporânea, é irrealista, ilegível, não faz sen­tido. Os tribunais mantêm-se no seu poder e jus­tificação: julgar, condenar. Nada de astúcias: con­ceder uma oportunidade à culpa da inocência, premiá-la, tribalizar o poder privado, que a lei floresça com as virtudes extraordinárias da mu­nificência, vamos dizer: está bem. Astúcia mais conveniente aos juízes que aos réus. Porque há nos réus uma estranha vulnerabilidade: um re­cesso deles, uma zona dolorosa algures na carne deseja repouso, paz, meu Deus, a paz, uma apa­ziguadora carícia, deseja o acolhimento tribal. Agora sim, agora começa a guerra: um poeta tem de torcer o pescoço à galinhola dentro de si que pede o milho da engorda, que aspira às grandes asas quiméricas, e quer levantar voo na capoeira e entoar o hino órfico dos idiomas, águia can­tadora, a galinhola quer ser amada e glorificada.

Entretanto voltaram-se todos para: a morte de Deus; a soberania da cultura, da história e do quotidiano; acabou a inspiração, essa fulminan­te aliança entre a experiência e a consciência; o que não é procurado mas achado acabou, o que é magicamente e arduamente e profundamente achado, isso acabou. Não é altura para o louvor de poetas que declaram: não somos modernos, «todo o visível se apoia num fundo invisível» (Novalis), «que significa este poema? significa aqulilo que fiz com ele» (Tsvétaéva), a circunstân­cia existe transtornadamente no poema e o que está longe dele só ganha realidade quando se apro­xima e entra e se ultrapassa em circunstância absoluta, em coração do poema, em poema da fala ilegal. E escandalosamente: veneramos as mara­vilhosas razões inaceitáveis de Bach e concorda­mos com ele em que a música se compõe para Deus, uma conversa com Deus. Deus? Que pre­tendem eles com este avesso de um Deus maiús­culo em cima ouvindo órgão e de um mestre de capela em baixo em som fiado? Deus morreu. Acabou o tempo cultural e histórico de Deus. Que tipos! Nem sequer sabem onde e quando vivem. Expulsem-nos da República.

Está melhor. Eu cá sou de opinião que não cabe aos juízes, ao tempo civil e ao templo civil, à República, encorajar a poesia, esta, a poesia bachiana. Só cabe ao Deus que morreu. Só a jus­tificam o invisível onde se apoia o visível e o sig­nificado do que se fez com o poema e a realidade da circunstância absoluta no poema. Isto colocou-se tão à margem do juízo que não há perver­são ou boa vontade que o engane ou lhe valha. Esta palavra está condenada. Bom é que esteja, pois uma palavra assim, antiga, dentro, inextricável, não se dirige à actualidade de qualquer gosto ou pressuposto. É anterior. A quem se diri­ge — agora — porque estamos num agora? Bom, espera talvez um tu virtual no eu que a proferiu. Espera que o Deus inexistente esteja de passa­gem pelo tu fortuito. A imprevista ressurreição de Deus, espera isso, espera o impossível? Mas se ela vive do impossível!, esta palavra condenada— a palavra do desencontro, fora, com o tema do lugar e do tempo do lugar.

É tudo quanto há para dizer sobre matéria tão complexa e aventurosa e contrária? É. E não me parece menor no capítulo de não fazer senti­do. Não vou fazer sentido onde se costuma fazer, não, obrigado. Eu faço pouco sentido onde me não encontram. Sou inactual.  

- Herberto Helder 
in A Phala, n.º 46, Assírio & Alvim, 1995

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