quinta-feira, março 01, 2018


Acaba isso antes que o dia
ganhe as forças que te faltam e te derrube
vem rápido, com traços bruscos, flechas
de tribos desconhecidas, signos respirando
no papel, abrindo os sons,
trabalhando o interior, deixa ainda
o contorno dessa cabeça até aos ombros
e um tremor na raiz, as sombras
do que se enterrou nesta terra, um peixe
desfazendo-se em espuma e também
a bailarina russa que sempre,
com o amanhecer,
recolhe ao coração de uma flor negra
é um escoar tudo isto, um veneno que se
apreende desordenamente com todas as quebras
paisagens exaustas mudando-se
num só balanço como aves que migram,
o cansaço das grandes vozes quando o mar
te toca no ombro, pede um gole
dessa garrafa e a leva como o gosto doce
e violento de um naufrágio

tremo de um silêncio que não se ouvia
desde que o último caiu no chão desta língua
os frutos e a faca de cozinha, incisão, cheiro,
misturando na tinta lembranças,
roubava-lhes a luz, ficou o tacho
sobre o fogão, o aroma espalhando-se
pelos corredores, e que falta nos faz
o sem sentido furioso, alto, em debandada
como cascos sacudindo a terra
rodando em torno de um astro novo
se mesmo calado ainda balançava e sofria
dos pés à cabeça e nós seguíamos
muito à distância impressionados
os episódios dessa doença
que contagia apenas dois ou três
a cada século, esta enchendo até cima
os sentidos que fazem do corpo
a mais insistente das sabedorias

hoje desembarcamos de crónicas futuras
da sensação de perda diante de um grande deserto
para ver as vistas, morrer um pouco de fome
ouvir de uma antiga cidade como Lisboa
ou Antuérpia o rumor que fez delas lendas
bebendo em cada copo esquecido
um gole de neve, o corpo de nuvens
desfeito gota a gota em bacias de pedra
em busca desse mágico embaraço
o verbo ateado entre as coisas do mundo
vimos intimamente, roubando aos ventos
como esse que te entrou por casa já lá
não estavas, depois de o verão
ter deixado a roupa queimada na corda,
meses depois de a teres sentido
cabeça de lado sobre o teu peito
antecipando o risco de te arrastar como vivo
escoiceando todo o caminho, cuspindo
ainda algum verso atroz de tão desarmante,
quem sabe até sorrindo-lhe depois
de também tu a teres medido, teres saído
pelo outro lado do medo, o outro lado
dessas noites de sonhos dilacerantes,
quando até a morte duvida se por ventura
não tomou um deus por um homem.

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