sábado, fevereiro 03, 2018


Manhã cedo, larga os sonhos
de barba a pingar já chaleira ao lume,
sai mostrando ao sol algumas passagens
anteriores às primeiras línguas e
isolado dos deuses, na sua oficina,
vai povoando o mundo

Abriu um buraco ali, servindo
de poleiro ao vento, que logo vem
encher-lhe de som as formas,
os moldes, e cose-lhe à mão
vestidos justos, usados uma só noite
e arrancados entre amantes
O espaço de trabalho divide-o ainda
com as eternas noivas, aranhas
tecendo os seus enxovais de seda

Espia a composição do dia
igual numas coisas a tantos, noutras
tão enfático, como o vizinho miúdo
que entra saltando da garupa de um grito
cego da sua épica, aos pêros com a linguagem
incapaz de pôr ordem numa história simples
acaba apanhando pelas costas
uma frase absurda e viva como um relâmpago
caído num campo de trigo seco

Coze um ovo, vai às árvores
e às hortas vizinhas e passeia entre esses
inconscientes monumentos, as obras
públicas de seres gulosos, os melros
por exemplo, que se empanturram de figos,
e deixam às paredes escalavradas
do cemitério ou de alguma igreja abandonada
os excrementos crivados de sementes.
O sol e a chuva, depois, tratam do resto
Um dia passamos, e, à altura do peito,
cresce no muro uma figueira.

Eu que também as vi, só dei conta
do fenómeno quando Piqueras
o tornou claro, comparando-o
com os poemas de Tonino Guerra
Não basta, é evidente, vivê-la,
ainda é preciso a faca que a abra
de novo, a luz do que regressa,
esse grau desmesurado das coisas
tomadas pela música da memória
Escutar as voltas do sangue tendo,
em fundo, o assobio em que se revezam
os dois coveiros sempre bêbedos –
e não há anjos mais cães nem volta
mais resvaladiça, que torne tão chegados
o céu e o inferno.

Assim, entretenho uma longa fome;
estudo as horas que posso,
segundo as preferências de cada uma,
e volto aos livros empapados
de chuva e salvos do convento,
ando com o nariz entre as ciências
que os modernos ignoram,
contemplando a rosa fria, lábio desfeito,
corpo quase só espinho,
despindo-se no escuro, com uma dor
tão grande nos gestos que trocou
a beleza por um génio perfumista

Ciências realmente vitais
como ir até ao limite do olhar
à beirinha de cair noutros olhos,
a doce intromissão à luz
de nos sabermos expostos,
sermos alguém, ou não restar nada,
não haver buraco tão fundo nem
morte que chegue ao desejo imenso
de desaparecer


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