terça-feira, outubro 17, 2017


Obeissez à vos porcs qui existent.
Je me soumets à mes dieux qui n’existent pas.
René Char


Bruscamente a janela recorda-me
que tenho um rosto.
Levo-lhe a mão e sinto nele
a incrível ausência
daquele miúdo estúpido e doce
que esperava o melhor de mim.

Escrevo algumas linhas sentado,
a cama absolutamente desfeita,
uma só flor agoniza
na jarra da inspiração,
largando um cheiro odioso.

Nas ruas assisto à grosseria das manhãs
O vazio imitando o melhor que sabe
(do que se lembra e pelo que ouviu)
a ordem mágica do despertar.

A região não tem pássaros,
é de uma frieza inquietante,
servida de ecos, gritos abafados.
Sempre um mau tempo que
não se explica.

A chuva amolece-me os ossos.
Se ao menos as árvores se calassem,
gerassem frutos, mas não.

O vento arrasta-se eriçadamente,
esfomeado, geme. Parece às vezes
falar sozinho. Umas ideias estranhíssimas.

Nos charcos é fácil perceber o olhar frio
dos deuses.
As flores ardem num instante, apagam-se,
deixam-se pisar.

Tento recuperar os nomes às iniciais
entre a retórica dos muros
nesse desvio face aos dias em que jurámos
nunca crescer.
Não restam agora quaisquer dúvidas:
Crescemos.

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