terça-feira, maio 23, 2017

Poemas para Cris, de Julio Cortázar, tradução de Jorge Sousa Braga


CINCO POEMAS PARA CRIS


1.

E muito além do mezzo
camin di nostra vita
existe um território do amor
um labirinto mais mental que mítico
onde se pode ser
feliz lentamente
sem o fio de Ariadne delirante
sem espumas nem lençóis nem coxas.
Tudo se cumpre num reflexo do crepúsculo
tu com o teu perfume e a tua saliva.
Eu ali do outro lado te possuo
enquanto te entregas com a tua amiga
aos jogos da noite.


2.

Na verdade, pouco me importa
que os teus seios adormeçam
na azul simetria de outros seios.
Eu tê-los-ia amolgado
com a sofreguidão das minhas carícias
e tu terias rido precisamente
quando o necessário e expectável
era que soluçasses.


3.

Sei muito bem o que ganhas
quando te abandonas ao prazer.
Porque é exactamente
o que eu teria sentido.


4.

Apenas um erro
o termo-nos encontrado ao fim do dia
num passeio púbico.


5.

(Gostaria que acreditasses
que este é o ridículo jogo
das compensações
com que me conforto a esta distância.
E tu continuas a dançar
no espelho de outro corpo
depois de teres sorrido

para mim).



OUTROS CINCO POEMAS PARA CRIS

1.

É como os primeiros momentos de um encontro
depois de uma longa separação: sorrisos, perguntas, lentos ajustes.
É estranho, pareces-me menos morena
que antes. A tua avó melhorou finalmente? Não, não gosto
de cerveja. É verdade, tinha-me esquecido.
E por debaixo do monta-cargas de sombra, lentamente sobe outro
presente. No teu cabelo começam a agitar-se as abelhas, a tua mão
roça a minha e coloca nela uma nuvem de algodão doce. Cheiras
de novo a sul.


2.

Tens, por vezes,
o rosto do exílio
aquilo que procura voz nos teus poemas.
O meu exílio é menos duro,
poupa nas defesas,
mas quando te levo pela mão
por uma pequena rua de Paris
gostaria tanto que o passeio acabasse
numa esquina de Montevideo
ou na minha rua em Corrientes
sem que ninguém viesse
pedir os documentos.


3.

Chego a pensar que podíamos
conciliar os contrários
encontrar o centro imóvel da roda
sair do binário
ser o vertiginoso espelho que concentra
num último vértice
esta dança cerimonial que dedico
á tua presente ausência.
Recordo Saint-Exupéry: “O amor
não é olhar o que se ama,
mas sim os dois olharem na mesma direcção”
Mas ele não suspeitou que tantas vezes
os dois olhávamos fascinados a mesma mulher
e que a esplêndida, feliz definição
cai no chão como um manequim cinzento.


4.

Creio que não te quero,
que somente quero a impossibilidade
tão óbvia de querer-te,
como a mão esquerda
enamorada dessa luva
que vive na direita.


5.

Ratinho, penugem, meia-lua,
caleidoscópio, barco numa garrafa
musgo, sino, diáspora,
palingénese, feto,
isso e o doce de abóbora,
o bandoneón de Troilo e duas ou três
áreas da pele onde
faz o ninho o guarda-rios,
são as palavras que contêm
a tua cruel definição inatingível,
são as coisas que guardam as substâncias
de que és feita para que alguém
beba e possua e arda convencida
de te conhecer inteira,
de que só és Cris.



ÚLTIMOS CINCO POEMAS PARA CRIS

1.

Agora escrevo pássaros.
Não os vejo chegar, não os invoquei,
mas de repente estão ali, são
um bando de palavras
pousando
uma
a
uma
nos fios da página,
chilreando, picotando, uma chuva de asas
e eu sem pão para lhes dar, unicamente
deixando-os vir. Talvez
isso seja uma árvore
ou talvez
o amor.


2.

A noite passada sonhei que eras
a sacerdotisa de Sekhmet, a deusa com cabeça de leão.
Ela nua em pórfiro,
tu nua na tua pele lisa.
Que presente estendias à deusa selvagem
que olhava através dos teus olhos
um horizonte eterno e implacável?
A taça das tuas mãos continha
a libação secreta, lágrimas
ou o teu sangue menstrual, ou a tua saliva.
Em todo o caso, não era sémen
e o meu sonho sabia
que a oferta seria recusada
com um lento rugido de desprezo
tal como tu esperavas desde sempre.
Depois, talvez, já não sei,
as garras nos teus seios, preenchendo-te.


3.

Nunca saberei porque a tua língua entrou na minha boca
quando nos despedimos no teu hotel
depois de uma visita amigável à cidade
e de um ajuste preciso de distâncias.
Acreditei por um momento que apontavas
uma data futura,
que abrias uma terra de ninguém, um interregno
de onde alcançar o teu minucioso musgo.
Cercado por amigas me beijaste,
eu a excepção, o monstro,
e tu a transgressora balbuciante.
Vá-se lá saber quem tu beijavas,
de quem te despedias.
Fui o vigário feliz de um só instante,
o que às vezes encontra na saliva
um breve gosto a madressilva
sob os céus austrais.


4.

Quisera eu ser Tirésias esta noite
e numa lenta espera de cabeça para baixo
receber-te e gemer sob os teus flagelos
e as tuas tíbias medusas,
sabendo que é a hora
da metamorfose recorrente,
e que ao descer o redemoinho de espuma
abrir-te-ias chorando,
sendo docemente empalada.
Para voltares depois
ao teu imperioso reino de falanges,
ao cerco de tua pele, aos teus húmidos tentáculos,
até juntos nos arrastarmos e abraçados alcançarmos
as areias do sonho.
Mas eu não sou Tirésias,
apenas um unicórnio
que procura a água nas tuas mãos
e encontra entre os lábios
uma mão cheia de sal.


5.

Não te vou aborrecer com mais poemas.
Digamos que te disse
nuvens, tesouras, pássaros, lápis,
e que alguma vez
tu sorriste.

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