quinta-feira, março 09, 2017


O mais natural é que tudo isto acabe
em desastre. E às vezes, para lá da crise
e do colapso, já divisamos o nosso
próprio rastro pelas últimas aldeias
onde o corpo se embriaga na qualidade
tranquila da luz, no modo como o vento
explora as casas, meio derruídas.
O abandono é sempre o grande tesouro
que uma era cede à seguinte.
Deixar tudo como está, no desvario
de um mundo antigo
murmurando na sua língua de cacos.

Na sala é provável que as notícias
tenham sido ignoradas a favor da música.
O giradiscos passa pelo sublime artefacto
de uma civilização digna de memória.
A agulha infectada de um estranho som
pinga uma gota fria que nos imobiliza.
Certo é que o vinho secou finalmente
em duas canecas de porcelana.
Levo uma aos lábios, de um cheiro vago
ou imaginado bebo-o morno
e o chão volta a estremecer.

A luz repartida e triste no quarto,
a sombra de um felino derramada
sobre a cómoda e um frasco junta selos,
moedas estrangeiras e borboletas
como se fora um velho encantamento.
Nesta cama, depois deles, terão dormido
astros com gafanhotos. Terá sido
testemunha das maiores intimidades
no transtorno das estações.

Já não contando ser lidos, os poucos
livros suprimiram o drama,
enterraram os personagens, e a tinta
ficou num delírio desatando as descrições.
De modo semelhante o amarelo
dos girassóis mancha-nos os dedos
só de olhar a imitação de Van Gogh,
tão pobre mas tão fiel, talvez
mais triste ainda que o original.
Há outra tela no cavalete,
o pincel caído, e algo como a sombra
de uma mão cheia dos cabelos dela.
Não me perguntes. A beleza sempre
parece ocultar-nos um segredo.

Aqui a chuva tem o peso inteiro da casa.
Penso nas sucessivas inundações,
enquanto vejo as formigas
carregando às costas barcos de cinza.
Pelos caminhos afogados, irmãs do silêncio,
as flores não têm mais que a sua beleza e solidão
.
Ecoam em uníssono doces impressões
que nos cobrem de abelhas o pensamento.

No largo, a capela tornou-se agnóstica,
as velhas loucuras foram apaziguadas.
Ouvem-se ritmos distantes cruzar
a superfície da terra. Os finais todos,
as cidades dinamitadas pelo sonho.
E a realidade que lhe escapou
chegou aqui sentindo-se culpada
depois de ter dado por si a ansiar
por toda esta desolação.


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