sexta-feira, março 31, 2017

Daniel Jonas, o electricista


Há barulho onde ele trabalha, ferramentas espalhadas pelo chão como se algum mistério estivesse a ser estripado,
e há gotas de suor grávidas de óleo, aquela luz nervosa piscando de um maçarico,
o excesso meticuloso de uma obra cujos contornos finais dificilmente se podem antecipar.
Isto tudo é a mesa no chão, rasto de coisas desmontadas que fica de um poeta rapace, que conhecemos à distância dos seus círculos altíssimos
coroando esta modorra
e que sem aviso dão para mergulhos, quedas furiosas, um trovão riscado da fome pelas singularidades,
há ali os passos de um ser demencial, bastando-lhe olhar as coisas para mover-se entre elas,
tomar-lhes o peso na língua.
É possível rodar a pequena manivela, baixar-se a janela, pondo um braço fora de um poema dele, sentindo a força da aragem, e isso diz-nos da velocidade a que vamos.
Ao mesmo tempo, no interior, as coisas ficam sujeitas a uma gravidade zero, pairam numa dança suave, ligeiramente exclamativa, elaboram-se épicas concisões, acende lume para um, para dois.
Põe o sopro no oco das coisas, calibrando sempre o seu confuso instrumento.
Um idioma carregado de artifícios, camadas, depressões, parece dar uso a tecnologias de ponta, um processador de texto fluente em código, html, com hiperligações para a oculta etimologia de palavras que não soam senão como murmúrios, tudo embalado em assobios de grandes árias a velhas operetas,
não se contentando com a rudimentaridade dos modelos narrativos, o poeta atira um piano de um promontório ao mar, e delicia-se mais com as aparatosas possibilidades melódicas de um acidente destes do que propriamente com o resultado, a consequência é sempre menos interessante, mas a sugestão, essa sim, produz universos paralelos, realidades alternativas.
É preciso gostar-se um pouco, ter-se um gozo em ver o cancan das pernas da língua, para se gostar finalmente de um poeta que faz o seu show só ilustrando a pauta, é preciso gostar só um pouco para o ir seguindo até ao fim, até finalmente perceber alguma coisa,
é uma prática que abdica da teoria, a língua é a sua própria aventura, o el dorado está nas mãos, numa música de movimentos que caladamente se repercutem na linha, no verso, em pausas sufocadas pela vegetação, com água pelos joelhos,
não é um poeta que se visite, não tem uma casa no monte, é mais como a corda de que certas coisas precisam, o arco com que se rasgam no ar, se despem inteiramente
um brilho refeito a partir de desequilíbrios na luz, a sua atenção não é uma permanência mas um salto rápido de uma coisa a outra, um tráfico de pormenores num instante ilusionista,
às vezes dele só se sente a perda, é preciso recuar na memória, partir a coisa, dar com uma pedra no eco que ficou, quebrá-lo, e então, revirar-lhe as entranhas, num efeito de câmara lenta, apreciando o golpe em toda a sua extensão,
as ondulações que provoca na paisagem, porque há aqui uma velocidade que, se nos falha a concentração, pode parecer o barulho distante de um motor, um cortador de relva,
o poeta não está sempre a convidar para uma dança e outra a seguir,
as coisas sucedem-se de forma intrincada, é o mais próximo que vamos tendo de uma experiência de leitura acrobática,
faz-nos suar;
o sargento tem o feitio e um apito, quer mais e mais flexões, estamos naquele estado de tensão entre a exaustão e a bebedeira dos nervos, quando os limites se questionam do que são capazes.
Entre os muitos detractores de Joyce, houve um poeta americano, Max Eastman, que sintetizou a coisa acusando-o de culto da ininteligibilidade. Joyce respondeu-lhe: «O que peço ao meu leitor é que dedique a sua vida inteira a ler as minhas obras.»
É raro numa língua destas, tão periférica, tão desinflada, em que os asnos se tornam os seus maiores cultores, uma língua transformada numa cadeia (nesse duplo sentido que acaba na prisão) de provérbios, frases feitas, expressões tacanhas, um asno urra geringonça, no dia seguinte tudo reza e corre com para a mesma cenoura, e já não se pode refutá-lo, sob pena de se ser tachado de ininteligível, num tempo em que os poetas tantas vezes pedem licença, desculpa, dobram as mãos como se patas, vigiam os passos maiores que as pernas, esses saltos imprescindíveis à poesia,
numa língua destas, como dizia, é raro surgir um que não esteja sempre a olhar para trás para assegurar-se que o leitor continua colado a ele como se fora a sua sombra.
O Daniel não tem a sua reserva, não é identificável por ciscar num certo padrão um domínio, mas antes por avançar feito um dínamo, a sua assinatura é a energia, a sensação de que esta vertigem não passará duas vezes pelo mesmo rio, nem pelo mesmo homem. É ele o monstro do seu próprio génio. Finalmente um excêntrico.
Num tempo tão denunciado pela sua ausência de qualidades, eis um poeta que não acata a indigência geral, nem vai pôr na mão dela a trela a pedir que o leve a passear.
Muito de vez em quando, espaçadamente, lá surgem os poetas para não ouvir o ditado nem a moral ordinária que serve de bitola aos demais,
e mesmo aqueles que se estragam de tanto a combaterem, só fazem dos poemas as úlceras provocadas pela acidez à tona destes dias,
mas ainda há fugas que honram as grandes ambições, ainda há obras como sistemas de iluminação,
canais aéreos, condutas de ar, luz viva
e a cada leitor basta subir a um banco, puxar o fio, enroscar a lâmpada, e iluminar o quarto.

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