sábado, fevereiro 04, 2017


El sonido es la muerte que todavía resiste
y levanta, sin manos, un gesto hacia lo vivo.

Juan Eduardo Cirlot


De um perfume de flor surge toda
uma época, de uma certa cadência
na chuva, algumas ruas debaixo
da luz certa despertam de novo
aquela sombra que nos deu nome.

Talvez o som volte, memória ou eco,
um fruto mordido algumas vezes,
e o caroço depois deixado a perfumar
o quarto, como a carcaça de um fauno
entre a transparência e a cintilação
na hora em que muda a luz.
Então, podem ler-se outras coisas,
palácios reflectidos na água de um verso,
o ar que passa pela boca capta essas
coisas invisíveis que, mal se dizem,
estão perdidas para sempre.

Há ruídos que tomo como indicações
para cegos. Ao lado ouço-lhe os passos
sem nenhuma ordem particular.
A água então já sobe as escadas.
Os pássaros que lhe serviram de voo
tem-nos agora nos bolsos, mortos.
Lá em cima o gato cobre
o telhado inteiro, nada passa por ele.
A noite, que foi ágil, aparece hoje
abandonada e de mãos vazias.

A carne é um espelho e uma estrela.
Onde o vidro cresce e rasga a carne
rente ao reflexo, a tinta
perde luz, escama, o osso cede.
Escreves palavras calmas,
cada vez mais frias.
Como se em lábios suaves recuperasse
os contornos, puxando até aos ombros
aquele vestido de terra adolescente,
esse murmúrio de tantas flores.
Se te disser que as oiço ainda.

Mas eu conhecia a descrição.
Se alguma coisa fosse mudada de lugar
já não seria o mesmo mundo.
Ali a corrente afrouxa, o rio deixou
de ser fresco, digere incansavelmente
o pássaro amarelo que roubaste
há muito tempo de um quadro.

Talvez sonhes com isto, disse-me.
As moscas sobre a cama, tantos livros
abertos carregando o ar, a presença
infame daquele que vive das peças
de um milagre destruído.
Incapaz de ficar dentro de si,
sinto-lhe o cansaço, os olhos
com linhas a mais. Levanta-se,
apanha os óculos do chão e
limpando-os na camisa, pergunta-me:
Como se desvia o olhar de um morto?


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