quinta-feira, janeiro 12, 2017


 Para o Miguel

Espalhadas ao redor da minha paciência
uma porção de coisas
resistindo a toda a utilidade:
baldes, a pá e o arame, gatos de cimento,
pulgas, defuntos, os retratos,
segurando as paredes,
uma ameixa mole num prato...
Tenho uma fome sobrenatural
de objectos naturais, e peço
a cada um que não me deixe só
com as palavras.

Na minha vida é tarde, mal oiço já
os passos do sol e se os frutos caem
sinto-me seguido. Vivo intrigado
com as notas secas, ínfimas
que escapam de troncos húmidos,
o refúgio de bichos que esticam
a corda ao mais espantoso
silêncio. Afinam tudo,
até que toda a terra se converta
em eco
.

Na pedra ainda há pouco a chuva
citava Verlaine perfeitamente,
as poças ficaram calmas
como segredos de escura água estelar.
Não vou dizer que os conheço,
mas sei de tipos a quem o mundo
de verdade pertence,  só têm
os cigarros em que passam perdidos,
isso e um ouvido de pardal,
tão trabalhado
que não lhes escapa um soluço
de bom calibre, nem inversões na brisa,
cortes de sentido ou imagens dessas
que iluminam bruscamente
a nossa época.

Não os encontro por estas ruas,
mas tenho-os lido, sigo esses cuidados
todos: como cada manhã
limpam as armas, como de noite
tiram o chapéu e tapam
o peito quando olham para cima
atentos a movimentações no céu,
como compõem debaixo da pele
os ossos numa certa ordem.

Se em tempos só tínhamos
por horizonte a parede
,
hoje trazemos ao cinto as chaves
desta terra. Sobre ela
as flores projectam sombras
na forma de cruzes. Enterrámos
tudo, impusemos o terror da beleza.
Quando passamos as distâncias
ainda movem os lábios, aos poucos
retomam os idiomas abolidos.

Leio sem descanso.
E se já desapareço, ou me custa
dizer que faço do tempo,
no chão, os vidros do copo partido
de que agora mesmo bebo,
dizem-me que estou acordado:
no piso de cima de um lado ao outro,
agitado, pareço ter companhia –
vou-lhe perguntando
em que guerra nos poderemos salvar?

Por muito que me trema a mão,
o quarto ou o juízo,
isto pelo menos eu tenho: a confiança
de saber que um golpe firme,
de pura intenção, basta para que o meu
verso rompa a mola dos anos.

Neste país que me oculta e me nega,
naturalmente, quero a admiração
do meu inimigo.
Quero que se entregue, traga
a corda e o nó feito. Hei-de cuspir
o caroço da ameixa, podemos
esperar juntos que a árvore cresça.


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