O que fica deste esforço além dos papéis pintados com tinta –
sejam jornais, revistas ou mesmo livros –, o que podem hoje as palavras
fazer contra o curso de um mundo que parece incapaz de tapar o ralo por
onde tudo se escoa indistintamente? Ana Margarida de Carvalho deu um
quarto de século da sua vida ao jornalismo. Na “Visão” fez de tudo,
desde repórter a crítica de cinema; foi editora, assinou crónicas e
reportagens, algumas das quais ganharam dos mais prestigiados prémios do
jornalismo. Isso não impediu que o fim fosse outra coisa que não “o mais
inglório”, sozinha perante um director de recursos humanos, nesse pífio
Juízo Final em que não há luta possível, pois no lugar de qualquer juiz
se encontra “um destes seres anónimos e transitórios, sem uma única
palavra de explicação”. O caso só chocará os muito distraídos, sendo bem
ilustrativo da situação em que, nos últimos anos, se viram centenas de
jornalistas.
A romancista que foi uma das grandes revelações
da literatura portuguesa nos últimos anos, conseguiu pelo menos cravar
um último espinho com o seu desabafo na página pessoal do Facebook,
obtendo grande repercussão nas redes sociais. E foi curioso uma vez mais
apreciar o pacto de silêncio da generalidade dos media, como se o
assunto não lhes dissesse respeito. São os telhados de vidro, e contra
isso não há decência que se imponha.
Com o romance de estreia,
“Que Importa a Fúria do Mar” (livro que tinha sido finalista do Prémio
Leya), Ana Margarida de Carvalho venceu o Grande Prémio de Romance e
Novela APE/DGLB. Agora está no desemprego, e não sabe bem que capítulo
se seguirá na sua vida profissional. Garante que a denúncia da forma como se viu “destratada e desconsiderada e humilhada e coagida a
assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável” foi uma forma
apenas de dar o assunto por encerrado, mas admite que possa vir a sofrer
repercussões. De tudo o que a apanhou desprevenida, não deixa escapar a
ironia do seu sucesso enquanto romancista ter muito provavelmente
acabado por condená-la como alvo preferencial da inveja dos colegas,
especialmente aqueles que, sem especial talento para o jornalismo, revelaram um “talento desmesurado para a intriga”.
Em 2013, quando publica o primeiro romance, tinha que idade?
Tinha 39 quando o escrevi. Demorou um ano e tal a ser publicado.
Já tinha havido outros manuscritos?
Não,
não tinha absolutamente nada. O que tinha mais próximo da ficção eram
as crónicas, naquele meio termo em que nos distanciamos do jornalismo e
nos servimos de uma subjectividade que nos leva para esses terrenos a
que hoje chamam auto-ficção. Tinha guiões de cinema, uma peça de teatro,
mas nada firmemente no campo da ficção.
“Que Importa a Fúria do Mar” é a sua primeira tentativa de escrever um romance?
Sim.
O romance não era um horizonte que tinha já traçado?
Não.
Estava muito mais interessada na área do documentário. Tinha guiões que
tiveram o apoio do ICA. Na altura era bom dinheiro, mas nunca consegui
passar o concurso para a realização. Nos concursos para escrita/guião
ganhei uns três, mas para a realização faltava-me currículo.
E porque é que aconteceu o primeiro livro?
Não
partiu de mim. Um dia, o Rui Breda [responsável pela comunicação da
Leya] telefonou-me, em nome da Maria do Rosário [Pedreira, editora],
porque estavam à procura de novos escritores e tinham lido uma
reportagem de que tinham gostado, e desafiaram-me.
E concebeu primeiro a estrutura do romance ou deixou-se levar pelo ímpeto da escrita?
O
primeiro foi um pouco mais arrumado do que este [“Não se Pode Morar nos
Olhos de um Gato”, segundo romance, publicado em 2016]. Foi um livro um
pouco mais estruturado, mas depois as coisas tomam o seu rumo. O acto
mais inspirador da escrita é a própria escrita.
Até aqui vinha encontrando afinidades com os escritores portugueses da tua geração?
Parte
da minha actividade jornalística foi na área cultural, entrevistei
muitos escritores e sempre acompanhei o que ía sendo publicado. Mas,
neste momento, tendo feito parte do júri do Prémio Pen Club, li boa
parte da literatura lusófona publicada em 2015. Há coisas muito fortes
que não estão a ter repercussão, não só porque os media estão desfasados
ou desinteressados, mas porque as próprias editoras apostam no cavalo
errado. Muitas vezes preocupam-se mais em seguir os ventos do mercado do
que apontar caminhos, defendendo a qualidade. Agora que li de forma
intensiva e extensiva o que foi feito em 2015 tive essa noção de que há
livros fantásticos que não tiveram o menor eco. E um livro sem eco está
condenado a desvanecer-se semanas depois de aparecer nas livrarias.
Qual foi o livro que premiaram na categoria de romance?
Foi
um livro de um cabo-verdiano, ex-ministro da Cultura, que se chama
Mário Lúcio Sousa, com o romance “Biografia do Língua”. Ele é mais
conhecido como músico, mas tem uma escrita diferente, muito empolgante,
mas como vês passou completamente despercebido.
Cresceu na
casa de um escritor [Mário de Carvalho], rodeada de livros. Lembra-se de
acompanhar o que fazia o seu pai e de se projectar nisso?
Se
calhar por isso nunca sacralizei os livros. Os livros andavam por ali em
casa aos pontapés, acessíveis a mim, à minha irmã [Rita Taborda
Duarte]. Nunca nada nos foi proibido e, portanto, é um pouco como os
miúdos que se habituam a ver os pais na televisão, assumem que é normal
todos os pais aparecerem na televisão. Para mim era uma coisa banal, à
qual não atribuía nenhum valor especial.
E, do lado dele, houve alguma curiosidade especial em ler a filha que se revela tardiamento como romancista de?
Tinha
a minha irmã, que preenchia já essa quota literária da família. O meu
avô também era poeta, e a minha irmã começou a fazer poesia desde cedo,
como fez muitos livros infantis. Portanto, foi ela quem precocemente
manifestou esse apelo. Se havia uma expectativa era em relação a ela.
Mas agora há os dois romances. Publicados estes livros, qual foi a reacção?
Escrevi-os
em segredo, não contei a ninguém e fiz até a proposta à Maria do
Rosário Pedreira de publicar sob pseudónimo. Não queria nem associações
ao meu pai, nem à minha actividade jornalística. Até porque não fazia
ideia... E se isto for uma porcaria? Não estou com vontade de ser
trucidada pela crítica.
A sensação que tive na leitura deste
segundo romance foi de que estava perante uma escrita para adultos. E
esse parece-me ser o grande óbice da literatura contemporânea
portuguesa, em que nos vemos muitas vezes perante uma escrita para um
público infanto-juvenil embora com um especial investimento barroco na
linguagem.
Sou muito adulta, a verdade é essa. Não sou muito
sentimental, nem me comovo muito comigo própria, e não me interessa por
aí além falar da minha vida. Ou da vidinha, como lhe chamava o O’Neill.
Sempre ouvi esse lema, e não sei bem como é que ele o dizia, mas sempre
me ficou essa ideia: “Nunca contes a vidinha”.
No seu romance
não me parece que o olhar esteja enternecido consigo mesmo. Há alguma
secura, firmeza. Mencionou já a admiração por Cardoso Pires, e a
sensação é de que ultimamente poucos têm reclamado essa lição de
seriedade e apuro.
Essa tentação de me enternecer comigo
própria, de me rir ou chorar com as minhas personagens, isso não tenho
de todo. Pode ser uma questão de personalidade. Em relação ao Cardoso
Pires, o que eu sinto é uma enorme veneração. Ele é o oposto daquilo que
eu escrevo, porque o que ele consegue, numa frase, é ser absolutamente
preciso, quase com uma exactidão matemática, e escrever, como ele
chamava, uma escrita no osso. Ou seja, tirar todas as redundâncias,
todas as gorduras. Andava à caça dos adjectivos desnecessários,
raramente usava advérbios... A minha escrita é o contrário, vai à
procura daquilo que quer dizer, o que pode parecer uma redundância mas é
também um desespero.
Se há essa procura há também uma
plasticidade da língua em que se coloca no limite entre narrativa e
poesia. Também me interessa pelo contraponto face a autores como Valter
Hugo Mãe ou mesmo Afonso Cruz, em que esse enternecimento com a
linguagem e auto-deslumbramento chega a um ponto em que ao ler os
romances parecem querer um leitor de 12 anos.
Sim, mas o
próprio Afonso diz que nunca sabe quando está a escrever se o faz para
crianças, adolescentes ou para adultos. Acho que ele assume isso. O que
acho realmente preocupante é que um escritor se deixe rebaixar em função
da acessibilidade dos seus livros, para alinhar num facilitismo e
assegurar a vendabilidade dos seus livros. Isso é que acho que um
escritor não tem o direito de fazer. Mas cada um faz o que pode, e como
pode. Se eu soubesse escrever como o Cardoso Pires... Quem me dera. O
escritor acaba por andar à volta das suas próprias limitações e
circunstâncias. O que tem acontecido é que vivemos num ambiente em que
tudo está sujeito a uma infantilização. Há uma grande infantilização dos
públicos todos, o que leva a confusões gravíssimas.
Sente o mesmo na literatura?
Há
uma grande infantilização da linguagem. Ao embarcarmos nesse raciocínio
de que é preciso tornar a linguagem o mais fácil e imediata possível,
que se pusermos palavras difíceis as pessoas vão desistir porque não vão
compreender, estamos a ser de uma arrogância enorme. De resto, é uma
coisa que no jornalismo nos obrigam constantemente a fazer. Com um
paternalismo inaceitável, dizem-nos que o leitor não vai perceber. Temos
de ser muito directos, usar palavras óbvias... E não temos, não
devemos.
Tudo tem de ser de um didatismo primário.
Isso
é estar a considerar os leitores seres inferiores, incapazes de
compreender. Como se só entendessem a literalidade. E isso depois tem
custos. O facto de a literatura, do jornalismo de imprensa e televisivo
ser cada vez mais infantil leva a que as bitolas baixem, e de facto as
pessoas ficam infantilizadas, e começam a reger-se por esse padrão, e
depois, mesmo sem querer, tornam-se incapazes de perceber uma ironia, ou
qualquer coisa acima do literalismo. É aquilo a que se assiste cada vez
mais nas redes sociais. Ali tudo o que se diz acaba por ser levado à
letra, e parece que não se pode passar uma ideia ao nível do sub-texto.
Isto tem custos até eleitorais.
E os leitores que culpa têm?
Há
uma culpa que é partilhada com os leitores, os consumidores de jornais e
televisão que aceitam o básico, e isto leva-nos à história da rã que se
vai deixando cozinhar lentamente, e talvez tenhamos hoje chegado ao
ponto de termos uma rã em estado de coma.
Porque é que os seus romances recuam tanto no tempo? Isto prende-se com as leituras que mais a influenciaram?
Sim, acho que todos nós somos aquilo que lemos. Acho que as nossas experiências mais importantes às tantas foi acompanhar o Capitão Ahab e darmo-nos conta de que a necessidade de vingança nas páginas do Moby Dick é uma experiência mais vital do que quase tudo o que nos aconteceu. Apesar de todos os anos a trabalhar como jornalista, e de ter passado por muitas coisas que foram importantes como experiência de vida, penso que algumas das experiências mais marcantes da nossa vida vêm das leituras que fizemos. Não precisamos de ter um amor de perdição, e ainda bem. Podemos testemunhá-lo em Shakespeare ou no Camilo. Não precisamos de ler tudo sobre as invasões napoleónicas na Rússia, mas podemos ler o “Guerra e Paz”, que é uma óptima maneira de falar com os mortos sem termos de frequentar os cursos da Alexandra Solnado. Pelos vistos é possível continuar a comunicarmos, a questionarmo-nos... Porque é que o Hamlet não matava o tio? A Capitu do Machado de Assis traiu ou não o Bentinho? Passam séculos e continuamos em diálogo com estes autores do passado. Que são os clássicos, aqueles que não passam.
Não lhe parece que a partir de certa altura o discurso tem vindo no sentido de desprezar a experiência literária? Hoje é frequente pensar-se que ler livros é rejeitar a verdadeira vida, como se a vida dos livros fosse uma vida menor. Custa-me a acreditar que um não-leitor possa compreender com profundidade um acontecimento de grande consequência histórica.
Nisso estamos de acordo. Basta ver os jornais no espaço cada vez mais marginal que é dado à cultura. Falámos da geração do meu pai, e não me parece que tenha existido com esta força e convicção um afastamento da cultura. É a tal história: Oiço falar de cultura e puxo da pistola. Na revista onde trabalhei [Visão] a cultura deixou de se chamar cultura, porque parece uma coisa mal vista. Passou a chamar-se Vagar. Há cada vez uma maior contaminação do espaço da literatura, com cada vez mais objectos na forma de livros que não podiam ser mais avessos à literatura, mas que beneficiam dessa confusão. Às tantas um livro de receitas já tem o mesmo valor que uma obra literária. Se calhar devíamos aplicar uma terminologia diferenciadora, como fazem os anglo-saxónicos, referindo-se aos escritores e aos escreventes. Do mesmo modo que há os jornalistas e os entertainers. Em relação aos livros, muitos salvaram as minhas férias. Eu estava a viver bons momentos, mas eles raptaram-me à monotonia. Senti-me, por vezes, brutalmente acompanhada, sendo atirada de um extremo ao outro da escala das emoções por um livro. Coisas que se calhar não teria conseguido através da minha vida, que é uma vida perfeitamente banal.
Na auto-entrevista
que fez para o “Jornal de Letras” associou a ideia de identificar-se com
o outro com a sensibilidade de uma pessoa de esquerda, que é capaz de
chamar a si a experiência dos desfavorecidos.
Essa definição é
tão boa como outra qualquer. Se arranjar uma melhor substituo-a. O meu
livro, o último, é sobre a alteridade, sobre como é que conseguimos ou
não colocar-nos na pele do outro. Sendo assim é um livro sobre a pele,
nos vários sentidos. No da melanina, como também pele no sentido da
descamação, que as personagens sofrem por estarem presas numa praia. Ou
pele porque têm de estar tão próximos, pele contra pele. Ou pele também
porque se vêem obrigados a despirem as suas peles, as várias que
vestiram ao longo da vida para conseguirem sobreviver. Creio que,
evidentemente, uma pessoa de esquerda tem de saber colocar-se na pele do
outro, e na pele daquele que tira a palha mais curta da mão da vida.
Há
figuras de uma nova direita que têm assumido protagonismo que fazem
galantearia do seu individualismo, e parecem seres algo escorregadios,
incapazes de participarem de qualquer projecto comunitário.
É
uma boa estratégia de sobrevivência. Estão sempre resguardados, porque
não estão por estes, nem por aqueles, defendem umas teorias, mas são
seres à parte, e parece-me que se está a revelar uma tendência, essa de
muitas pessoas se identificarem com ideais de direita mas mimando esse
papel de outsiders. Sobretudo depois de a direita ter tido um desempenho
desastroso no anterior governo. Compreendo que não queiram associar-se
às escolhas que foram feitas. Acho que são anos que deixaram um lastro,
não só em termos económicos, mas em termos de dignidade, que será
preciso muito tempo para recuperar.
Num momento em que a
própria língua portuguesa parece estar a ser rebaixada a um vocabulário
cada vez mais restrito e restritivo, sente que é quase incontornável a
obrigação do romancista a obrigar os músculos da língua a saírem da
jaula?
Sim, julgo que é isso. Estamos sob uma influência muito
anglo-saxónica... Há hoje muitas pessoas que dizem que o Beckett só
usava não sei quantos vocábulos e que portanto se pode dizer o mesmo com
parcos recursos, e podemos ser simplistas. A tradição anglo-saxónica
colonizou-nos muito nos últimos anos e particularmente em termos
literários. Como sabemos a língua inglesa pode ser maravilhosa como pode
ser tremendamente básica, extremamente simples.
Sim, e há o inglês técnico...
Que é fácil de ler até para mim que sou péssima em línguas.
E agora quando pensa em escrever, quais são as suas urgências?
Como
não tenho nada daquelas assombrações dos escritores que se dizem
torturados, ou se sentem encarregues de uma missão, a minha urgência é
contar histórias. Quando estava a escrever este livro, que foi um
processo atribulado, não apenas por ser difícil fingir, para além das
personagens, uma linguagem arcaica...
Fez alguma pesquisa?
Não
muita coisa. Li dois livros de História sobre escravatura em Portugal,
mas em termos de linguagem foram ecos que me ficaram, e mesmo os
vocábulos mais usados pelos brasileiros bastou-me ter ouvido Chico
Buarque desde a infância.
E as novelas brasileiras?
Não,
isso estava proibida de ver. Nisso era uma das meninas ET na escola.
Houve também a literatura brasileira, que eu li muito. Desde Jorge
Amado, a João Ubaldo, a Guimarães Rosa... O “Grande Sertão: Veredas”, aí
há uma espécie de mina onde podemos ir buscar expressões ou imagens que
se multiplicam por mil.
Vamos ao afastamento da revista “Visão”. Pelo que percebi houve dez pessoas que saíram?
Sim, houve seis pessoas que foram indicadas para sair, e outras quatro que saíram voluntariamente.
O que é que foi mais inesperado nesta situação?
Já
fui editora, já fui grande repórter, já fiz crónicas, já fiz online,
fiz de tudo, e uma das coisas de que me orgulho foi de nunca ter
prejudicado um colega meu. Pelo contrário, sempre tentei ajudar. Quando
era editora e trabalhava com muitas pessoas penso que fui da maior
lealdade e sempre os protegi de tudo, inclusivamente acarretando imensos
problemas para mim. Mas o contrário, não é simétrico. Sempre chateei o
máximo que achei necessário os meus chefes. Para cima fui uma pessoa
muito pouco dócil, fui alguém que contestou muita coisa. Sem querer
armar-me em José Régio, não tendo a certeza sobre qual seria o caminho
certo a seguir, muitas vezes me opus ao caminho apontado, porque me
parecia desinteressante ou desonesto. Sendo uma pessoa tímida, no meio
não era vista assim, não só porque tive discussões bastante aguerridas
com estes chefes que me foram passando pela frente, como porque em
muitas entrevistas fazia perguntas incómodas. Tive uma educação
pós-1974, não fui educada para me limitar a seguir ordens. O que me
ensinaram foi a pensar e dizer o que pensava.
Tendo havido um
pós-1974, não é claro também que se desenhou um pós-2008, ou 2009, ou
seja, o momento da entrada em cena da crise financeira? Um período em
que a linha de orientação volta a ser o respeitinho, cuidadinho, os
inhos do medo?
Julgo que o nosso grande problema é a tal crise
de liderança que nos afecta a vários níveis. Começando nos líderes
mundiais, e nesse plano onde se perfilam os Trumps todos, muitos na
Europa também. Mas isto afecta a política como as grandes empresas, e
também as direcções dos jornais.
Uma ordem de capatazes sobre capatazes sobre capatazes, sem chegar nunca a haver um verdadeiro líder?
Sim, não há um líder porque as hierarquias não seguem a lógica do mérito.
Então o que há? Uma autoridade que prescinde de dar o exemplo.
Absolutamente.
A autoridade só vale pelo modelo autoritário em que estamos metidos,
pela organização do poder e não pela sua capacidade de se afirmar
através de um percurso que foi feito. Depois do Cáceres Monteiro, e
tendo gostado muito de trabalhar com o Pedro Dias de Almeida, que foi
meu editor durante muito tempo, não me lembro de ter tido um chefe que
eu admirasse pelas coisas que tenha feito. Pelo contrário, às vezes
embaraçava-me aquilo que os meus directores escreviam e faziam, ou as
opções que tomavam. Eram personagens altamente embaraçosas porque
fraquíssimas. Hoje temos pessoas fraquíssimas à frente dos jornais. Os
jornalistas todos se apercebessem disto, mas aqueles que o fazem notar
são postos de lado.
Mas em alguns aspectos os próprios
jornalistas parecem ter sido os caudilhos da profissão. É curioso como
se respeita sempre um pacto de silêncio em relação à denúncia de
situações que afectam os próprios jornais.
A questão é que os
jornalistas já veem a profissão como um mero emprego, e não pode ser. Não
somos meros tarefeiros, não estamos ali para obedecer. A nossa
assinatura tem que valer mais do que o ‘agradismo’ ao chefe. Tudo bem
que as pessoas precisem de pagar contas, mas a partir do momento em que o
jornalismo se torna um mero emprego, em que o que interessa é seguir as
ordens, assinar aquilo, preencher não sei quantos caracteres, ir para
casa e não ter chatices nenhumas, aí está tudo perdido. A partir do
momento em que os chefes dão valor a essas pessoas, que os vão
bajulando, que os vão seguindo acriticamente... Essas são as piores
pessoas porque não só não ajudam os chefes como alimentam um círculo
vicioso. Os chefes só se rodeiam destes ‘agradistas’, como dizem os
brasileiros, que há menor falha do director desaparecem todos, e os
directores vêem-se sozinhos, porque tudo aquilo era uma relação
interesseira. E estas pessoas, que sãs as que menos ajudam, são as mais
protegidas. Conheço pessoas que nunca escreveram uma linha e que estão
em altos cargos na “Visão”, e que ganham muito mais do que eu alguma vez
ganhei. Pessoas que quando escreveram para mim, enquanto editora, fui
obrigada a recusar-me a publicar.
E passaram por cima de si?
Completamente.
Mas
além de não querer ser dessa espécie que anda nas redacções para servir
de montada aos chefes, também sente que o ter-se tornado uma romancista
a prejudicou?
Penso que sim, claramente. Posso dizer-lhe que
na “Visão” esse era um tema tabu. Salvo alguns jornalistas mais
decentes, alguns amigos, esse era um assunto em que não se tocava na
redacção. Faz de conta que não acontecera.
Porque causava desgosto aos outros que sentiam não ter outro horizonte para além da revista?
Não
sei. Posso dizer que nos meus lançamentos apareceram três ou quatro
colegas. O eco que foi dado aos meus livros provocava nervosismo. “Agora
o que é que fazemos?” Nos outros jornais quando os próprios jornalistas
da casa são distinguidos, publicam alguma coisa, o próprio jornal
assume orgulho disso, faz alguma coisa para contribuir. No mínimo faziam
micro-notícias a assinalar isso.
Há um exemplo óbvio que é o
da Alexandra Lucas Coelho, em que o primeiro jornal a procurar
garantir-lhe sucesso crítico e a servir como pódio de lançamento é o
próprio “Público”?
Depois há outro pólo oposto, que é o meu
caso em que até o “Jornal de Letras”, que não é a minha redacção, o que
teve a propor-me foi uma auto-entrevista. Tive de fazer essa
brincadeira, que não deixa de ser uma palhaçada. Houve um director, não
destes que lá está, mas um anterior, igualmente desinteressante e sem
talento, que me disse que o facto de eu ser romancista só piorava a
minha situação. Ele queria que eu me fosse embora, e eu recusei-me,
disse-lhe que fosse ele embora, isto há cerca de um ano.
Uma
expressão especialmente acutilante no desabafo que
escreveu após ter sido “coagida” a assinar a rescisão amigável foi o ter
dito que a inveja na redacção da “Visão” se tornou um efeito
mobilizador entre alguns dos seus colegas.
Isso foi o mais
surpreendente. Comecei a trabalhar muito nova, cheia de entusiasmo.
Fazia imensas capas, e artigos que mereciam destaque, estava
completamente imersa no trabalho, levava o jornalismo muito a sério, e
não reparei que nas minhas costas havia quem estivesse muito descontente
por eu ficar com trabalhos importantes e que tinham visibilidade.
Infelizmente aprendi no jornalismo que a inveja é uma das forças que
mais motiva as pessoas. Não percebo ainda como é que pode ser
compensador investir na inveja, mesmo quando há outros sentimentos como a
ganância, a cobiça, outros que não são positivos mas que, ao contrário
da inveja, não se alimentam simplesmente da desgraça do outro. É isso e a
necessidade de ter o poder. Nunca pedi para ser editora, mas há pessoas
que tinham essa enorme ambição, mesmo não ganhando mais por isso.
Querem ter poder sobre o outro. Nem que seja mandarem num paquete, isso é
vital para eles.
Agora que se está a promover um congresso
dos jornalistas, qual lhe parece que sejam os aspectos em que deve haver
uma auto-crítica em vez de uma mera vitimização perante condicionantes
externas?
Se eu lhe disser que recebi mais mensagens de
jornalistas de outros jornais do que do meu próprio, penso que isso é
sintomático. Seria de esperar que tivesse tido mais apoio dos meus
colegas. Acho que os jornalistas são os piores para eles próprios.
Vivemos tempos em que os jornalistas têm medo. E é isso, precisamente, o
que os jornalistas não podem ter. Um jornalista com medo cai dentro
daquela noção que nos diz que não há nada mais parecido com um fascista
do que um burguês assustado. Um jornalista assustado, não só não
consegue fazer o seu trabalho, porque vive com receio das consequências e
dos processos e das chatices e dos pequenos contratempos que pode vir a
ter, como é um jornalista que se limita a obedecer e a não desagradar
ao chefe. Se calhar, se alguns dos meus colegas tivessem ficado do meu
lado, corriam o risco de escrever o seu nome, logo a seguir ao meu, na
lista de despedimentos. O problema é que quando chegar a vez deles vão
sentir o mesmo que eu senti: uma espécie de deserto em meu redor.
Tem alguma leitura sobre o que se passa com a própria crise de liderança no grupo Impresa?
Não,
não tenho. Nunca me interessou muito. Estava sempre compenetrada com o
que tinha que fazer. Nunca conheci os nomes, nem me interessei por saber
quem é que era chefe de quem. Este senhor dos Recursos Humanos que foi o
meu único interlocutor durante este processo de despedimento era alguém
que aparentemente trabalhava lá há 10 anos, eu devo-me ter cruzado com
ele 500 vezes no elevador ou na cantina e nem reparei nele. Tinha o meu
pacto que era com os leitores e com o jornalismo. O resto não me
interessa nada. Sei que houve uma altura em que as coisas estiveram
menos más, e isto foi recentemente. Houve uma distribuição de bónus e
curiosamente fui das poucas, e estamos a falar de dois ou três, que não
recebeu bónus. Nessa altura fiquei muito zangada e disse que não queria
mais trabalhar naquela secção, que era cultura, pois tinha noção do
trabalho que fiz e que não merecia a desconsideração. Depois veio o
director dizer-me que estava a barafustar por migalhas, que eram só 200
euros, e eu a explicar-lhe que era uma questão simbólica. Porque é que
eu fui discriminada? Por isso a surpresa do despedimento não foi tão
grande. Às tantas aquilo era o meu Afeganistão. Ía para a guerra todos
os dias sem saber qual seria o desfecho. E tenho alguma capacidade de
aguentar as coisas, tenho alguma frieza, nervo para aguentar discussões,
mas com a idade também sinto que vou perdendo a energia e vou
desistindo. Isto foi um falhanço meu. O que eu podia fazer era continuar
ali, sentada. Eles tiravam-me o computador e eu dizia-lhes: “Muito bem,
eu daqui não saio.” Mas não tive coragem de fazer isso, e assinei.
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