sexta-feira, dezembro 23, 2016

Entrevista a Ana Margarida de Carvalho (21.12.2016)




O que fica deste esforço além dos papéis pintados com tinta – sejam jornais, revistas ou mesmo livros –, o que podem hoje as palavras fazer contra o curso de um mundo que parece incapaz de tapar o ralo por onde tudo se escoa indistintamente? Ana Margarida de Carvalho deu um quarto de século da sua vida ao jornalismo. Na “Visão” fez de tudo, desde repórter a crítica de cinema; foi editora, assinou crónicas e reportagens, algumas das quais ganharam dos mais prestigiados prémios do jornalismo. Isso não impediu que o fim fosse outra coisa que não “o mais inglório”, sozinha perante um director de recursos humanos, nesse pífio Juízo Final em que não há luta possível, pois no lugar de qualquer juiz se encontra “um destes seres anónimos e transitórios, sem uma única palavra de explicação”. O caso só chocará os muito distraídos, sendo bem ilustrativo da situação em que, nos últimos anos, se viram centenas de jornalistas.

A romancista que foi uma das grandes revelações da literatura portuguesa nos últimos anos, conseguiu pelo menos cravar um último espinho com o seu desabafo na página pessoal do Facebook, obtendo grande repercussão nas redes sociais. E foi curioso uma vez mais apreciar o pacto de silêncio da generalidade dos media, como se o assunto não lhes dissesse respeito. São os telhados de vidro, e contra isso não há decência que se imponha.

Com o romance de estreia, “Que Importa a Fúria do Mar” (livro que tinha sido finalista do Prémio Leya), Ana Margarida de Carvalho venceu o Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB. Agora está no desemprego, e não sabe bem que capítulo se seguirá na sua vida profissional. Garante que a denúncia da forma como se viu “destratada e desconsiderada e humilhada e coagida a assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável” foi uma forma apenas de dar o assunto por encerrado, mas admite que possa vir a sofrer repercussões. De tudo o que a apanhou desprevenida, não deixa escapar a ironia do seu sucesso enquanto romancista ter muito provavelmente acabado por condená-la como alvo preferencial da inveja dos colegas, especialmente aqueles que, sem especial talento para o jornalismo,  revelaram um “talento desmesurado para a intriga”.


Em 2013, quando publica o primeiro romance, tinha que idade?

Tinha 39 quando o escrevi. Demorou um ano e tal a ser publicado.
Já tinha havido outros manuscritos?

Não, não tinha absolutamente nada. O que tinha mais próximo da ficção eram as crónicas, naquele meio termo em que nos distanciamos do jornalismo e nos servimos de uma subjectividade que nos leva para esses terrenos a que hoje chamam auto-ficção. Tinha guiões de cinema, uma peça de teatro, mas nada firmemente no campo da ficção.
“Que Importa a Fúria do Mar” é a sua primeira tentativa de escrever um romance?

Sim.
O romance não era um horizonte que tinha já traçado?

Não. Estava muito mais interessada na área do documentário. Tinha guiões que tiveram o apoio do ICA. Na altura era bom dinheiro, mas nunca consegui passar o concurso para a realização. Nos concursos para escrita/guião ganhei uns três, mas para a realização faltava-me currículo.
E porque é que aconteceu o primeiro livro?

Não partiu de mim. Um dia, o Rui Breda [responsável pela comunicação da Leya] telefonou-me, em nome da Maria do Rosário [Pedreira, editora], porque estavam à procura de novos escritores e tinham lido uma reportagem de que tinham gostado, e desafiaram-me.
E concebeu primeiro a estrutura do romance ou deixou-se levar pelo ímpeto da escrita?

O primeiro foi um pouco mais arrumado do que este [“Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato”, segundo romance, publicado em 2016]. Foi um livro um pouco mais estruturado, mas depois as coisas tomam o seu rumo. O acto mais inspirador da escrita é a própria escrita. 
Até aqui vinha encontrando afinidades com os escritores portugueses da tua geração?

Parte da minha actividade jornalística foi na área cultural, entrevistei muitos escritores e sempre acompanhei o que ía sendo publicado. Mas, neste momento, tendo feito parte do júri do Prémio Pen Club, li boa parte da literatura lusófona publicada em 2015. Há coisas muito fortes que não estão a ter repercussão, não só porque os media estão desfasados  ou desinteressados, mas porque as próprias editoras apostam no cavalo errado. Muitas vezes preocupam-se mais em seguir os ventos do mercado do que apontar caminhos, defendendo a qualidade. Agora que li de forma intensiva e extensiva o que foi feito em 2015 tive essa noção de que há livros fantásticos que não tiveram o menor eco. E um livro sem eco está condenado a desvanecer-se semanas depois de aparecer nas livrarias.
Qual foi o livro que premiaram na categoria de romance?

Foi um livro de um cabo-verdiano, ex-ministro da Cultura, que se chama Mário Lúcio Sousa, com o romance “Biografia do Língua”. Ele é mais conhecido como músico, mas tem uma escrita diferente, muito empolgante, mas como vês passou completamente despercebido.
Cresceu na casa de um escritor [Mário de Carvalho], rodeada de livros. Lembra-se de acompanhar o que fazia o seu pai e de se projectar nisso?

Se calhar por isso nunca sacralizei os livros. Os livros andavam por ali em casa aos pontapés, acessíveis a mim, à minha irmã [Rita Taborda Duarte]. Nunca nada nos foi proibido e, portanto, é um pouco como os miúdos que se habituam a ver os pais na televisão, assumem que é normal todos os pais aparecerem na televisão. Para mim era uma coisa banal, à qual não atribuía nenhum valor especial.
E, do lado dele, houve alguma curiosidade especial em ler a filha que se revela tardiamento como romancista de?

Tinha a minha irmã, que preenchia já essa quota literária da família. O meu avô também era poeta, e a minha irmã começou a fazer poesia desde cedo, como fez muitos livros infantis. Portanto, foi ela quem precocemente manifestou esse apelo. Se havia uma expectativa era em relação a ela.
Mas agora há os dois romances. Publicados estes livros, qual foi a reacção?

Escrevi-os em segredo, não contei a ninguém e fiz até a proposta à Maria do Rosário Pedreira de publicar sob pseudónimo. Não queria nem associações ao meu pai, nem à minha actividade jornalística. Até porque não fazia ideia... E se isto for uma porcaria? Não estou com vontade de ser trucidada pela crítica.
A sensação que tive na leitura deste segundo romance foi de que estava perante uma escrita para adultos. E esse parece-me ser o grande óbice da literatura contemporânea portuguesa, em que nos vemos muitas vezes perante uma escrita para um público infanto-juvenil embora com um especial investimento barroco na linguagem. 

Sou muito adulta, a verdade é essa. Não sou muito sentimental, nem me comovo muito comigo própria, e não me interessa por aí além falar da minha vida. Ou da vidinha, como lhe chamava o O’Neill. Sempre ouvi esse lema, e não sei bem como é que ele o dizia, mas sempre me ficou essa ideia: “Nunca contes a vidinha”.
No seu romance não me parece que o olhar esteja enternecido consigo mesmo. Há alguma secura, firmeza. Mencionou já a admiração por Cardoso Pires, e a sensação é de que ultimamente poucos têm reclamado essa lição de seriedade e apuro.

Essa tentação de me enternecer comigo própria, de me rir ou chorar com as minhas personagens, isso não tenho de todo. Pode ser uma questão de personalidade. Em relação ao Cardoso Pires, o que eu sinto é uma enorme veneração. Ele é o oposto daquilo que eu escrevo, porque o que ele consegue, numa frase, é ser absolutamente preciso, quase com uma exactidão matemática, e escrever, como ele chamava, uma escrita no osso. Ou seja, tirar todas as redundâncias, todas as gorduras. Andava à caça dos adjectivos desnecessários, raramente usava advérbios... A minha escrita é o contrário, vai à procura daquilo que quer dizer, o que pode parecer uma redundância mas é também um desespero.
Se há essa procura há também uma plasticidade da língua em que se coloca no limite entre narrativa e poesia. Também me interessa pelo contraponto face a autores como Valter Hugo Mãe ou mesmo Afonso Cruz, em que esse enternecimento com a linguagem e auto-deslumbramento chega a um ponto em que ao ler os romances parecem querer um leitor de 12 anos.

Sim, mas o próprio Afonso diz que nunca sabe quando está a escrever se o faz para crianças, adolescentes ou para adultos. Acho que ele assume isso. O que acho realmente preocupante é que um escritor se deixe rebaixar em função da acessibilidade dos seus livros, para alinhar num facilitismo e assegurar a vendabilidade dos seus livros. Isso é que acho que um escritor não tem o direito de fazer. Mas cada um faz o que pode, e como pode. Se eu soubesse escrever como o Cardoso Pires... Quem me dera. O escritor acaba por andar à volta das suas próprias limitações e circunstâncias. O que tem acontecido é que vivemos num ambiente em que tudo está sujeito a uma infantilização. Há uma grande infantilização dos públicos todos, o que leva a confusões gravíssimas.
Sente o mesmo na literatura?

Há uma grande infantilização da linguagem. Ao embarcarmos nesse raciocínio de que é preciso tornar a linguagem o mais fácil e imediata possível, que se pusermos palavras difíceis as pessoas vão desistir porque não vão compreender, estamos a ser de uma arrogância enorme. De resto, é uma coisa que no jornalismo nos obrigam constantemente a fazer. Com um paternalismo inaceitável, dizem-nos que o leitor não vai perceber. Temos de ser muito directos, usar palavras óbvias... E não temos, não devemos.
Tudo tem de ser de um didatismo primário.

Isso é estar a considerar os leitores seres inferiores, incapazes de compreender. Como se só entendessem a literalidade. E isso depois tem custos. O facto de a literatura, do jornalismo de imprensa e televisivo ser cada vez mais infantil leva a que as bitolas baixem, e de facto as pessoas ficam infantilizadas, e começam a reger-se por esse padrão, e depois, mesmo sem querer, tornam-se incapazes de perceber uma ironia, ou qualquer coisa acima do literalismo. É aquilo a que se assiste cada vez mais nas redes sociais. Ali tudo o que se diz acaba por ser levado à letra, e parece que não se pode passar uma ideia ao nível do sub-texto. Isto tem custos até eleitorais.
E os leitores que culpa têm?

Há uma culpa que é partilhada com os leitores, os consumidores de jornais e televisão que aceitam o básico, e isto leva-nos à história da rã que se vai deixando cozinhar lentamente, e talvez tenhamos hoje chegado ao ponto de termos uma rã em estado de coma.
Porque é que os seus romances recuam tanto no tempo? Isto prende-se com as leituras que mais a influenciaram?

Sim, acho que todos nós somos aquilo que lemos. Acho que as nossas experiências mais importantes às tantas foi acompanhar o Capitão Ahab e darmo-nos conta de que a necessidade de vingança nas páginas do Moby Dick é uma experiência mais vital do que quase tudo o que nos aconteceu. Apesar de todos os anos a trabalhar como jornalista, e de ter passado por muitas coisas que foram importantes como experiência de vida, penso que algumas das experiências mais marcantes da nossa vida vêm das leituras que fizemos. Não precisamos de ter um amor de perdição, e ainda bem. Podemos testemunhá-lo em Shakespeare ou no Camilo. Não precisamos de ler tudo sobre as invasões napoleónicas na Rússia, mas podemos ler o “Guerra e Paz”, que é uma óptima maneira de falar com os mortos sem termos de frequentar os cursos da Alexandra Solnado. Pelos vistos é possível continuar a comunicarmos, a questionarmo-nos... Porque é que o Hamlet não matava o tio? A Capitu do Machado de Assis traiu ou não o Bentinho? Passam séculos e continuamos em diálogo com estes autores do passado. Que são os clássicos, aqueles que não passam.
Não lhe parece que a partir de certa altura o discurso tem vindo no sentido de desprezar a experiência literária? Hoje é frequente pensar-se que ler livros é rejeitar a verdadeira vida, como se a vida dos livros fosse uma vida menor. Custa-me a acreditar que um não-leitor possa compreender com profundidade um acontecimento de grande consequência histórica.

Nisso estamos de acordo. Basta ver os jornais no espaço cada vez mais marginal que é dado à cultura. Falámos da geração do meu pai, e não me parece que tenha existido com esta força e convicção um afastamento da cultura. É a tal história: Oiço falar de cultura e puxo da pistola. Na revista onde trabalhei [Visão] a cultura deixou de se chamar cultura, porque parece uma coisa mal vista. Passou a chamar-se Vagar. Há cada vez uma maior contaminação do espaço da literatura, com cada vez mais objectos na forma de livros que não podiam ser mais avessos à literatura, mas que beneficiam dessa confusão. Às tantas um livro de receitas já tem o mesmo valor que uma obra literária. Se calhar devíamos aplicar uma terminologia diferenciadora, como fazem os anglo-saxónicos, referindo-se aos escritores e aos escreventes. Do mesmo modo que há os jornalistas e os entertainers. Em relação aos livros, muitos salvaram as minhas férias. Eu estava a viver bons momentos, mas eles raptaram-me à monotonia. Senti-me, por vezes, brutalmente acompanhada, sendo atirada de um extremo ao outro da escala das emoções por um livro. Coisas que se calhar não teria conseguido através da minha vida, que é uma vida perfeitamente banal.
Na auto-entrevista que fez para o “Jornal de Letras” associou a ideia de identificar-se com o outro com a sensibilidade de uma pessoa de esquerda, que é capaz de chamar a si a experiência dos desfavorecidos.

Essa definição é tão boa como outra qualquer. Se arranjar uma melhor substituo-a. O meu livro, o último, é sobre a alteridade, sobre como é que conseguimos ou não colocar-nos na pele do outro. Sendo assim é um livro sobre a pele, nos vários sentidos. No da melanina, como também pele no sentido da descamação, que as personagens sofrem por estarem presas numa praia. Ou pele porque têm de estar tão próximos, pele contra pele. Ou pele também porque se vêem obrigados a despirem as suas peles, as várias que vestiram ao longo da vida para conseguirem sobreviver. Creio que, evidentemente, uma pessoa de esquerda tem de saber colocar-se na pele do outro, e na pele daquele que tira a palha mais curta da mão da vida. 
Há figuras de uma nova direita que têm assumido protagonismo que fazem galantearia do seu individualismo, e parecem seres algo escorregadios, incapazes de participarem de qualquer projecto comunitário.

É uma boa estratégia de sobrevivência. Estão sempre resguardados, porque não estão por estes, nem por aqueles, defendem umas teorias, mas são seres à parte, e parece-me que se está a revelar uma tendência, essa de muitas pessoas se identificarem com ideais de direita mas mimando esse papel de outsiders. Sobretudo depois de a direita ter tido um desempenho desastroso no anterior governo. Compreendo que não queiram associar-se às escolhas que foram feitas. Acho que são anos que deixaram um lastro, não só em termos económicos, mas em termos de dignidade, que será preciso muito tempo para recuperar. 
Num momento em que a própria língua portuguesa parece estar a ser rebaixada a um vocabulário cada vez mais restrito e restritivo, sente que é quase incontornável a obrigação do romancista a obrigar os músculos da língua a saírem da jaula?

Sim, julgo que é isso. Estamos sob uma influência muito anglo-saxónica... Há hoje muitas pessoas que dizem que o Beckett só usava não sei quantos vocábulos e que portanto se pode dizer o mesmo com parcos recursos, e podemos ser simplistas. A tradição anglo-saxónica colonizou-nos muito nos últimos anos e particularmente em termos literários. Como sabemos a língua inglesa pode ser maravilhosa como pode ser tremendamente básica, extremamente simples.
Sim, e há o inglês técnico...

Que é fácil de ler até para mim que sou péssima em línguas.
E agora quando pensa em escrever, quais são as suas urgências?

Como não tenho nada daquelas assombrações dos escritores que se dizem torturados, ou se sentem encarregues de uma missão, a minha urgência é contar histórias. Quando estava a escrever este livro, que foi um processo atribulado, não apenas por ser difícil fingir, para além das personagens, uma linguagem arcaica...
Fez alguma pesquisa?

Não muita coisa. Li dois livros de História sobre escravatura em Portugal, mas em termos de linguagem foram ecos que me ficaram, e mesmo os vocábulos mais usados pelos brasileiros bastou-me ter ouvido Chico Buarque desde a infância.
E as novelas brasileiras?

Não, isso estava proibida de ver. Nisso era uma das meninas ET na escola. Houve também a literatura brasileira, que eu li muito. Desde Jorge Amado, a João Ubaldo, a Guimarães Rosa... O “Grande Sertão: Veredas”, aí há uma espécie de mina onde podemos ir buscar expressões ou imagens que se multiplicam por mil.  
Vamos ao afastamento da revista “Visão”. Pelo que percebi houve dez pessoas que saíram?

Sim, houve seis pessoas que foram indicadas para sair, e outras quatro que saíram voluntariamente.
O que é que foi mais inesperado nesta situação?

Já fui editora, já fui grande repórter, já fiz crónicas, já fiz online, fiz de tudo, e uma das coisas de que me orgulho foi de nunca ter prejudicado um colega meu. Pelo contrário, sempre tentei ajudar. Quando era editora e trabalhava com muitas pessoas penso que fui da maior lealdade e sempre os protegi de tudo, inclusivamente acarretando imensos problemas para mim. Mas o contrário, não é simétrico. Sempre chateei o máximo que achei necessário os meus chefes. Para cima fui uma pessoa muito pouco dócil, fui alguém que contestou muita coisa. Sem querer armar-me em José Régio, não tendo a certeza sobre qual seria o caminho certo a seguir, muitas vezes me opus ao caminho apontado,  porque me parecia desinteressante ou desonesto. Sendo uma pessoa tímida, no meio não era vista assim, não só porque tive discussões bastante aguerridas com estes chefes que me foram passando pela frente, como porque em muitas entrevistas fazia perguntas incómodas.  Tive uma educação pós-1974, não fui educada para me limitar a seguir ordens. O que me ensinaram foi a pensar e dizer o que pensava.
Tendo havido um pós-1974, não é claro também que se desenhou um pós-2008, ou 2009, ou seja, o momento da entrada em cena da crise financeira? Um período em que a linha de orientação volta a ser o respeitinho, cuidadinho, os inhos do medo?

Julgo que o nosso grande problema é a tal crise de liderança que nos afecta a vários níveis. Começando nos líderes mundiais, e nesse plano onde se perfilam os Trumps todos, muitos na Europa também. Mas isto afecta a política como as grandes empresas, e também as direcções dos jornais.
Uma ordem de capatazes sobre capatazes sobre capatazes, sem chegar nunca a haver um verdadeiro líder?

Sim, não há um líder porque as hierarquias não seguem a lógica do mérito.
Então o que há? Uma autoridade que prescinde de dar o exemplo. 

Absolutamente. A autoridade só vale pelo modelo autoritário em que estamos metidos, pela organização do poder e não pela sua capacidade de se afirmar através de um percurso que foi feito. Depois do Cáceres Monteiro, e tendo gostado muito de trabalhar com o Pedro Dias de Almeida, que foi meu editor durante muito tempo, não me lembro de ter tido um chefe que eu admirasse pelas coisas que tenha feito. Pelo contrário, às vezes embaraçava-me aquilo que os meus directores escreviam e faziam, ou as opções que tomavam. Eram personagens altamente embaraçosas porque fraquíssimas. Hoje temos pessoas fraquíssimas à frente dos jornais. Os jornalistas todos se apercebessem disto, mas aqueles que o fazem notar são postos de lado.
Mas em alguns aspectos os próprios jornalistas parecem ter sido os caudilhos da profissão. É curioso como se respeita sempre um pacto de silêncio em relação à denúncia de situações que afectam os próprios jornais.

A questão é que os jornalistas já veem a profissão como um mero emprego, e não pode ser. Não somos meros tarefeiros, não estamos ali para obedecer. A nossa assinatura tem que valer mais do que o ‘agradismo’ ao chefe. Tudo bem que as pessoas precisem de pagar contas, mas a partir do momento em que o jornalismo se torna um mero emprego, em que o que interessa é seguir as ordens, assinar aquilo, preencher não sei quantos caracteres, ir para casa e não ter chatices nenhumas, aí está tudo perdido. A partir do momento em que os chefes dão valor a essas pessoas, que os vão bajulando, que os vão seguindo acriticamente... Essas são as piores pessoas porque não só não ajudam os chefes como alimentam um círculo vicioso. Os chefes só se rodeiam destes ‘agradistas’, como dizem os brasileiros, que há menor falha do director desaparecem todos, e os directores vêem-se sozinhos, porque tudo aquilo era uma relação interesseira. E estas pessoas, que sãs as que menos ajudam, são as mais protegidas. Conheço pessoas que nunca escreveram uma linha e que estão em altos cargos na “Visão”, e que ganham muito mais do que eu alguma vez ganhei. Pessoas que quando escreveram para mim, enquanto editora, fui obrigada a recusar-me a publicar.
E passaram por cima de si?

Completamente.
Mas além de não querer ser dessa espécie que anda nas redacções para servir de montada aos chefes, também sente que o ter-se tornado uma romancista a prejudicou?

Penso que sim, claramente. Posso dizer-lhe que na “Visão” esse era um tema tabu. Salvo alguns jornalistas mais decentes, alguns amigos, esse era um assunto em que não se tocava na redacção. Faz de conta que não acontecera.
Porque causava desgosto aos outros que sentiam não ter outro horizonte para além da revista?

Não sei. Posso dizer que nos meus lançamentos apareceram três ou quatro colegas. O eco que foi dado aos meus livros provocava nervosismo. “Agora o que é que fazemos?” Nos outros jornais quando os próprios jornalistas da casa são distinguidos, publicam alguma coisa, o próprio jornal assume orgulho disso, faz alguma coisa para contribuir. No mínimo faziam micro-notícias a assinalar isso.
Há um exemplo óbvio que é o da Alexandra Lucas Coelho, em que o primeiro jornal a procurar garantir-lhe sucesso crítico e a servir como pódio de lançamento é o próprio “Público”?

Depois há outro pólo oposto, que é o meu caso em que até o “Jornal de Letras”, que não é a minha redacção, o que teve a propor-me foi uma auto-entrevista. Tive de fazer essa brincadeira, que não deixa de ser uma palhaçada. Houve um director, não destes que lá está, mas um anterior, igualmente desinteressante e sem talento, que me disse que o facto de eu ser romancista só piorava a minha situação. Ele queria que eu me fosse embora, e eu recusei-me, disse-lhe que fosse ele embora, isto há cerca de um ano.
Uma expressão especialmente acutilante no desabafo que escreveu após ter sido “coagida” a assinar a rescisão amigável foi o ter dito que a inveja na redacção da “Visão” se tornou um efeito mobilizador entre alguns dos seus colegas.

Isso foi o mais surpreendente. Comecei a trabalhar muito nova, cheia de entusiasmo. Fazia imensas capas, e artigos que mereciam destaque, estava completamente imersa no trabalho, levava o jornalismo muito a sério, e não reparei que nas minhas costas havia quem estivesse muito descontente por eu ficar com trabalhos importantes e que tinham visibilidade. Infelizmente aprendi no jornalismo que a inveja é uma das forças que mais motiva as pessoas. Não percebo ainda como é que pode ser compensador investir na inveja, mesmo quando há outros sentimentos como a ganância, a cobiça, outros que não são positivos mas que, ao contrário da inveja, não se alimentam simplesmente da desgraça do outro. É isso e a necessidade de ter o poder. Nunca pedi para ser editora, mas há pessoas que tinham essa enorme ambição, mesmo não ganhando mais por isso. Querem ter poder sobre o outro. Nem que seja mandarem num paquete, isso é vital para eles.
Agora que se está a promover um congresso dos jornalistas, qual lhe parece que sejam os aspectos em que deve haver uma auto-crítica em vez de uma mera vitimização perante condicionantes externas?

Se eu lhe disser que recebi mais mensagens de jornalistas de outros jornais do que do meu próprio, penso que isso é sintomático. Seria de esperar que tivesse tido mais apoio dos meus colegas. Acho que os jornalistas são os piores para eles próprios. Vivemos tempos em que os jornalistas têm medo. E é isso, precisamente, o que os jornalistas não podem ter. Um jornalista com medo cai dentro daquela noção que nos diz que não há nada mais parecido com um fascista do que um burguês assustado. Um jornalista assustado, não só não consegue fazer o seu trabalho, porque vive com receio das consequências e dos processos e das chatices e dos pequenos contratempos que pode vir a ter, como é um jornalista que se limita a obedecer e a não desagradar ao chefe. Se calhar, se alguns dos meus colegas tivessem ficado do meu lado, corriam o risco de escrever o seu nome, logo a seguir ao meu, na lista de despedimentos. O problema é que quando chegar a vez deles vão sentir o mesmo que eu senti: uma espécie de deserto em meu redor.
Tem alguma leitura sobre o que se passa com a própria crise de liderança no grupo Impresa?

Não, não tenho. Nunca me interessou muito. Estava sempre compenetrada com o que tinha que fazer. Nunca conheci os nomes, nem me interessei por saber quem é que era chefe de quem. Este senhor dos Recursos Humanos que foi o meu único interlocutor durante este processo de despedimento era alguém que aparentemente trabalhava lá há 10 anos, eu devo-me ter cruzado com ele 500 vezes no elevador ou na cantina e nem reparei nele. Tinha o meu pacto que era com os leitores e com o jornalismo. O resto não me interessa nada. Sei que houve uma altura em que as coisas estiveram menos más, e isto foi recentemente. Houve uma distribuição de bónus e curiosamente fui das poucas, e estamos a falar de dois ou três, que não recebeu bónus. Nessa altura fiquei muito zangada e disse que não queria mais trabalhar naquela secção, que era cultura, pois tinha noção do trabalho que fiz e que não merecia a desconsideração. Depois veio o director dizer-me que estava a barafustar por migalhas, que eram só 200 euros, e eu a explicar-lhe que era uma questão simbólica. Porque é que eu fui discriminada? Por isso a surpresa do despedimento não foi tão grande. Às tantas aquilo era o meu Afeganistão. Ía para a guerra todos os dias sem saber qual seria o desfecho. E tenho alguma capacidade de aguentar as coisas, tenho alguma frieza, nervo para aguentar discussões, mas com a idade também sinto que vou perdendo a energia e vou desistindo. Isto foi um falhanço meu. O que eu podia fazer era continuar ali, sentada. Eles tiravam-me o computador e eu dizia-lhes: “Muito bem, eu daqui não saio.” Mas não tive coragem de fazer isso, e assinei.



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