terça-feira, novembro 15, 2016

José Manuel Simões. O poeta que quis a fuga, descobriu uma saída e tomou-a


Em “Sobras Completas” resgata-se a memória e os versos que servem o rastro de um dos fundadores do Grupo do Café Gelo, seis décadas depois do início da aventura

Helder Macedo e José Manuel Simões, anos 50

Fevereiro de 1999, morre em Paris José Manuel Simões, um dos fundadores de um grupo que, bem longe de sonhar que haveria de ser embalsamado noutro mito literário, um bastião do surrealismo, quis ser um lugar fora do mapa, à margem de tudo o que o destino pudesse entrever. Uma cratera feita das tantas quedas de alguns jovens que se refugiaram de um tempo e de um país submetido à pequena moral e entretido a amesquinhar-se. Ali, na Praça do Rossio, ainda existe o café, e uma série de painéis estendem a vénia a um espaço hoje mais frequentado por turistas, gente que não poderá entender como este tresanda a História e estórias ou mitos menores. É hoje mais um ponto onde o caminho se senta para comer outro desses pastéis de nata que se recomendam como o melhor da cidade e, porque não, do universo.

Faz 60 anos, que vários jovens – entre eles João Vieira, José de Sá Caetano, Gonçalo Duarte, Helder Macedo, João Rodrigues, José Escada, Herberto Helder, Ernesto Sampaio, António José Forte, Luiz Pacheco, Mário Cesariny, Fernando Gil, Alfredo Margarido – começaram a reunir-se “para fugir aos cafés literários”, como contava Helder Macedo, que ali cumpriu o serviço da mais desregrada juventude, na horizontal hierarquia de “amizades, alianças, feitas sobretudo de recusas de outras coisas”. Segundo o professor jubilado do King’s College, em Londres, “não havia um grupo de convergências mas um grupo de divergências comuns, que foram sendo manifestadas de variadíssimas maneiras”.

No passado dia 28 de Outubro Macedo deu por concluída o que havia assumido como uma “missão de amizade”, ao apresentar a edição de “Sobras Completas”, de José Manuel Simões, depois de em 1998, no último encontro dos dois, este lhe ter confiado “um envelope castanho, formato A4, que tinha dentro os textos agora publicados neste livro”. A capa do volume que, depois de outras tentativas goradas, saiu finalmente com o selo da Abysmo, reproduz o título escrito à mão na face do envelope.

“Quase exactamente” um ano depois morria no hospital, deixando um pequeno apartamento no bairro parisiense de Menilmontant em cujo quarto, recorda José de Sá Caetano – no segundo dos dois prefácios que antecedem os poemas recolhidos no volume, sendo o primeiro assinado por Macedo – “por detrás da cabeceira da cama, subia em forma de leque uma mancha castanha-amarelada, que se prolongava pelo tecto”. E adianta: “O Zé fumava para dormir, acordava para fumar.”

O cineasta, na companhia e no carro do pintor João Vieira, ainda empreendeu uma última tentativa de repatriar o amigo, de quem após anos de cada vez mais esporádicos contactos, tinham sabido notícias que davam conta de que estaria seriamente doente. Comia pouco e com dificuldade; pior, estaria com sintomas que replicavam os mesmos que haviam antecedido a morte da sua mulher, Marie, uma americana, que pagou mais cedo a vida boémia, “com a garganta destruída pelo fumo e pelo álcool”.

Se os dois amigos vinham embalados na surpresa e com a conversa já bem ensaiada e o remate de que “Portugal cura tudo”, Simões já tinha o seu encontro com a morte, e preferia esperá-la em Paris, “a capital de tudo”.

Depois do Gelo, depois de para ele Portugal ter deixado de existir, como lembra Caetano, Simões levou a sua fuga e recusa pelos anos, e contentava-se talvez com o próprio ensejo de ruas e cafés onde, como recorda Macedo, passeava o seu “aspecto de clochard de luxo, barba descuidada, à-vontade de grande senhor sem compromissos, imediatamente reconhecido pelos velhos empregados do Balzar (uns snobs intelectuais) como merecedor das mesmas atenções que davam ao Monsieur Derrida e ao Mister Peter Brook, em mesas próximas da nossa”.

Na juventude, o poeta dera provas de uma imensa generosidade, no modo de pactuar e contribuir para os percursos dos amigos, ajudando a avanços de uma arte comum antes de virem a ser lidos como passos solitários e geniais de obras mais e menos completas, obras que marcaram decisivamente a poesia portuguesa do século XX. Este poeta pôde realizar-se deslocando o seu quotidiano para as ruas parisienses onde, nos anos de juventude se tinha sonhado, e talvez isso tenha deixado para a escrita apenas as sobras. Já habitava o sentido e respirava o ar vivo dos poemas e da música que o haviam inspirado. Bastou-lhe, assim, levar “uma vida absolutamente honesta”, sobrevivendo de traduções que fazia “com grande competência”, como sublinha José de Sá Caetano.

Seis décadas volvidas sobre as actividades iniciantes dos jovens que se encontravam no Gelo, a Macedo importa salvar tanto a memória dos esquecidos, dos que ficaram como presenças secundárias no retrato de grupo ou foram mesmo lançados borda fora do mito, como lhe interessa desmentir uma certa apropriação para fins de catalogação. “Estamos numa fase de saudosismo e de nostalgia face a uma dissidência mais ou menos inventada, da perspectiva de agora, contemporânea. Uma nostalgia por qualquer coisa que hoje não poderia haver, e ainda bem, mas que é uma tendência para neutralizar os riscos que aquelas pessoas tomaram”, refere Macedo, explicando que “não era fácil para estes jovens de 19 ou vinte e poucos anos não fazerem aquilo que era esperado deles.”

Numa tentativa de desafectação do que foi a experiência do grupo face às ambições artísticas que alguns daqueles jovens viriam a prosseguir, Macedo insiste no prefácio do livro que “a história do Gelo é também uma história de exílios criativos”, e frisa que Simões “deu sempre mais do que recebeu, discretamente, intransigentemente, como quem descrê”. Assim, na leitura das sobras deste poeta, como nota no testemunho mais abaixo António Barahona, outro dos frequentadores do Gelo, releva menos a busca de uma perfeição do verso, e mais um testemunho da tal ânsia de libertação que melhor se confunde com uma intemporal convicção do que seja a aventura poética. “Pode-se não escrever”, como lembrou Pedro Oom. “Pode-se pegar na caneta sem haver caneta/ Pode-se escrever sem caneta”.

Do mesmo modo que alguns, sem vestir a farda, sabem ser bem mais poetas do que os que publicam versos, os que insistem nisso, talvez porque lhes falte o sangue, e inutilmente esperam que a tinta possa servir-lhes de transfusão, inventar a vida que exactamente recusaram. Talvez por covardia, ou simplesmente porque da poesia lhes interessa essa impressão que causa, essa admiração fria de quem a olha de fora, a aprecia e segue indiferente. Juntos buscarão, eventualmente, escamotear um quotidiano avesso a todo o risco.

“Quero que morram de fome/ as palavras entre nós”, escreve José Manuel Simões, o poeta a quem Manuel de Castro dedicou o seu primeiro livro, “Paralelo W”, depois de com ele discutir aqueles e outros poemas, poeta que lhe fez sugestões importando-se com os versos do amigo como se fossem seus. O mesmo que, segundo Helder Macedo, terá sugerido o título para o primeiro grande poema de Herberto Helder, “O Amor em Visita”, encheu os seus próprios passos de uma sombra funda que, não sendo tão abismal ou espantosa, traduz esse “segredo profissional” de quem conhece de cor o horror e, além dele, viu uma saída. E a tomou.

“Porque eles não sabem/ o que separa a pedra do musgo,/ o templo do bordel,/ o beijo do acto,/ o arco da sombra do arco.// Faltam-lhes os instrumentos/ (bússolas, conta-quilómetros)/ que permitem medir a distância,/ no tempo das nossas mortes,/ do tiro ao punhal/ do punhal à mão,/ da mão ao grito e aos vermes.// (...) – eu que sei pesar a profundidade do eco/ e contar a vida dos construtores de violinos –/ não posso perder o meu tempo a ensinar-lhes”.



 


"Sobras Completas"

de José Manuel Simões

Prefácios de Helder Macedo

e José de Sá Caetano

Edição: Abysmo

Lisboa, Outubro 2016

120 págs.

PVP 11,5 €



Testemunho de António Barahona: Memória do poeta que deu aos outros a sua poesia 


A lenda de José Manuel Simões acompanhou a minha adolescência, por via do Manuel de Castro, que lhe votava uma amizade fiel e admirativa, bem expressa na simples dedicatória do seu primeiro livro, “Paralelo W”.

Não cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Quando, em 1957, comecei a frequentar o Café Gelo, ele já se ausentara para Paris.

Mystica de auto-destruição: eis a “doença” que ameaçava tornar-se epidemia de uma geração de príncipes navegadores, sem reino e sem rumo, apenas donos de lugar incerto e à deriva nas águas, em direcção ao Desconhecido.

Já morreram quase todos. Eu sou um último dos últimos.

Por iniciativa de Helder Macedo, a Abysmo publicou as “Sobras Completas”, de José Manuel Simões.

Este livrinho, de irónico título, transportou-me para muitos anos atrás, ao tempo em que alternava a revolta política com angústia e desejo de suicídio, e o mytho do poeta maldito orientava o meu comportamento amoral e desenfreado.

“Sobras Completas”, de uma obra genial a haver, não corresponde à lenda, não é genial, mas tão só (o que já não é pouco) um testemunho de uma época, poderosamente ingénuo, genuíno e generoso.

Testemunho de um grande poeta que deu aos outros poetas a sua poesia, em vez de ser ele próprio a escrevê-la.

Em memória de José Manuel Simões, que me deu, por intermédio do Manuel de Castro, este poemeto datado de 9 de Novembro de 1961, reescrito muitas vezes, mas sempre posto de lado, até que recuperou o centro e o sentido, exactamente 55 anos depois, hoje, 9 de Novembro de 2016. 

É noite
espero-te
fumo
como a chaminé dum hospital  
Escrevo
palavras que nadam num aquário
Tenho peças de relógio perdidas nas veias
Sou um colar violento ao teu pescoço de planta  
Fumo
e teço um manto de algas
para te cobrir ao menor sinal de chuva  
O sangue flui
com os destroços e os ossos das horas  
O cigarro pega fogo à noite

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