sábado, novembro 19, 2016

DE PROFUNDIS

(O PORTO A SÉPIA)

São tantos os lençóis estendidos nas fachadas
que a cidade parece um barco fantasma pronto a zarpar.
A Solidão e a Esperança, duas velhas viúvas, jogam às cartas.
Cristo crucificado vigia desde as varetas de um cometa.
O filho mais pequeno do coveiro arrancou as rodas
de um carrinho de bebé e agora conduz um esquife de corrida.


Por todo o lado há lentos gatos que deambulam
com cuidado, como se tivessem medo de fazer tudo em pedaços.
Gatos negros, famintos, espectrais, antiquados.
Gatos obstinados em ser gatos e nada mais.
Chegaram a esta distante chanfradura do mundo
para velar a mancha cega do oceano.

Por fim o Atlântico: o mar abre-se e fecha-se
como a cortina de uma tragédia inacabada.
Na Praia dos Ingleses um caranguejo inicia a retirada,
arrastando a sua pesada armadura acobreada.
Memória, onde te diriges a estas horas
retrocedendo da mesma forma, embuçada
e torpe, mas desprovida de couraça?

A chuva introduz água nova na velha fugacidade do rio.
Em barcas e lojas os capacetes marciais das térmitas
despertam da sua sesta os cavalos do Apocalipse,
Os segundos perfuram cada minuto e ameaçam ruína.
Uma anciâ benze-se na igreja escorada.
Parece que quer partir em quatro um grande medo
ou afugentar uma nuvem de moscas inoportunas.
Depois de introduzir a sua moeda na máquina

do Senhor, poderá durante uma hora e meia alimentar uma vela.
A vela treme um instante, titubeia e logo se põe de pé.
Vela, esperança de voo curto, barata mascote dos pobres,
o que iluminas? O sacristão agacha-se na escuridão
para calçar com três ou quatro hóstias um velho banco que coxeia.

- Jesús Jiménez Domínguez
(tradução de Jorge Sousa Braga)
in “Contra Las cosas redondas”

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