quarta-feira, outubro 19, 2016


Luis Julio Rosamarga, em Silbar contra el aire y otros ensayos interesados. (Buenos Aires, 2010)

            Tradução e cortes de Miguel Filipe Mochila

            O furor do novo, aniquilando a crítica, acarretou paradoxalmente a inércia de tudo. A ruptura, feita lei, converteu-se num amuo contínuo, numa sucessão casuística de pontos sem nós, flutuando sem passado e sem futuro. A preceptiva do espectáculo não poderia senão implicar uma rotunda inércia: o fim da história literária tornou tudo deambulatório, sem esteio, libertou a obra numa poeira quase nem palpável, vazia de conteúdo. (...) A letra escrita deixou de ser ressalto, passou a ser o terreno do polido e do escorreito: o mundo perdeu o seu ser obstaculizado pela obra.

            O fim da história foi o fim da perspectiva, desse passo atrás que todo o olhar crítico emprega para lançar um projecto, isto é, uma ideia de futuro. A obra flutua hoje num absoluto presente, é uma língua sem gramática, e como tal morta.

            [A desgramaticalização] da poesia mata-a. Considerando a dimensão metadiscursiva inerente ao fazer poético – se todo o poema diz, só de respirar, ao que vem -, todo o texto é necessariamente crítico, e nesse sentido todo o texto tem a sua gramática – a sua pauta interpretativa, o seu sistema tutelar – e como tal a crítica é constitutiva da própria arte.

            O problema capital é, pois, que hoje o texto (poema, conto ou canção) não venha afirmar nada. É quase sempre só enumerativo: palavras para encher o vazio. Palha.

            Assim como para poder averiguar e ajuizar a partir de e sobre a qualidade de uma língua o domínio crítico da mesma é necessário – posso por exemplo dizer que o Paco fala bem ou fala mal o inglês apenas se e quando eu conheço esse sistema linguístico, domino com um grau mínimo de consciência a sua gramática -, para poder averiguar e ajuizar a partir de e sobre um objecto artístico é necessário ser detentor dos princípios que subjazem ao sistema em que se inscreve, ou seja à língua artística a que se reporta.

            Eis porque a crítica actual o não é: num tempo desprovido de sistema – de poéticas -, nenhuma resenha ou comentário de jornal tem propriedade cabal nas suas elocuções pseudo-críticas.

            Não é possível discutir-se o que não tem substância histórica, o que levita no vazio, aquilo que não projecta qualquer ideia de futuro. Não posso julgar criticamente uma língua que desconheço, uma língua que se rege num grau zero de princípios gramáticos, uma língua-grunhido.

            Se não sei nada de inglês, não consigo ajuizar acerca da qualidade ou da pertinência do inglês – perante o inglês fluente, hoje eu sequer sei se “aquilo” é inglês.

            A rebelião crítica é pois uma rebelião de gramaticalização da língua poética. Para que a literatura tenha sentido é necessário que faça sentido. Tornar a arte comunicável implicaria a mencionada rebelião, a saber: 1) gramaticar a arte, reinventar a poética; e 2) proceder a uma intervenção pedagógica que dê público a essa gramática, criar consciência, fazer do poema um pouco mais que grunhido.

            Hoje, para que a literatura continue a existir, mais do que continuar a escrever contos e poemas, é urgente ministrar o conhecimento sistémico daquilo que se pretende para ela, fazer das pessoas proprietárias de uma avaliação crítica do objecto artístico. Não se trata - entenda-se - de conversão ou arregimentação. Trata-se simplesmente de vir o poema a propósito, de vir dizer alguma coisa sem fazer somente número. De ter uma ideia de futuro para a literatura, de justificá-la para a pessoa do porvir.

            O segundo ponto é inútil sem o primeiro. E vice-versa.

 

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