quinta-feira, setembro 08, 2016


Dorme nas tuas escadas
uma memória, unhas e flores
pelas gretas de idades verde-húmidas,
as telhas cedem, correm céus inesperados,
arrastam-se bêbadas lembranças,
e o vento entre as árvores faz
a tarde ouvir as suas intimidades.
Esta é a região, no bolso
ainda trago o fósforo dos incêndios,
sonho de uma força a que nunca
demos forma.

Fomos estranhos o tempo todo,
– quanto ardor por ser puros –
um amor pobre e correspondido,
chovia no quarto, tínhamos os tachos
espalhados e jogávamos cartas,
líamos as descrições do sono
noutras línguas, atirando-nos
à escuridão onde o mundo é feito.
Amantes de filmes mudos,
sombras de dez dedos na projecção
do candeeiro sobre a parede,
pobre cinema para agachar o céu,
deixar as estrelas queimar os lençóis.

O espelho que escondeste,
derrama-se ainda, verte reflexos
inalcançáveis:
antigos restos do amor.
Nos dedos da memória desfiz
essa rosa, fiz dela
um vestido. Levei-o nos braços
e o vento parou de novo nos teus
cabelos calmos.

A mão de que te despejaste,
preparou-me a chuva este Verão,
oiço-a de roda da casa,
cá dentro piso sons quebrados,
a abelha enganada desfaz as asas
onde morre o ar
retoma a sua lenta indústria sob a treva
produz o mel de quantas coisas
se perdeu o sabor,
devolve-nos o soluço a meio do verso,
tudo o que perseguimos,
imagens de um mundo esvaído.

Olha uma única vez dentro do copo
este que se embebedava nos santos vasos
perdeu a sombra, soube o que era a rua,
por tantas ruas teve um encanto doméstico
na cara abriam-se-lhe luzes fortíssimas
teve apitos de comboio rente à pele,
dormiu algumas vezes na linha
mas nunca quis deixar a ninguém
a sua morte, como fizeste.


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