domingo, agosto 14, 2016


Quero levar tempo nisto. Embrutecê-lo, escrito. Fazer paciência. Ao lado, um pouco de mundo. Uma mão de calmantes, e o virar do copo, a água que desce fria e certa, até um fundo qualquer. Tivesse memória e bastava alindar o ditado. Agridoçá-la, e roubar perfidamente desabafos de vida para matá-la num punhado de personagens, embasbacadas nalgum enredo meio sujo e meio luminoso. Há uma parte de nós que já só aguenta a vida dos outros, um desgosto sério com os próprios motivos. Importante aqui é escrever sem acordar nem desagradar o gato. Dar corda baixinho, para que se leia sem ter de aguentar acordado. A sorte é essa, do gosto que fica como levitando. Porque tarde ou cedo dói de morrer, umas frequências premonitórias, de hipocondríaco, ou já a frieza medida de umas frases curtas, de bata branca, num consultório. A vida dos outros é o que nos safa. Antes de alguma miséria somos meio desligados, sem luz, até que enfim um baque faz mais força desse lado que tínhamos surdo. Posso ficar horas no bolso só, passos em volta, descaminhos. A manhã é só para alguns. A outros descose, mistura-os sem aviso. Cão de quantos?, perdidos, homens ou restos, aventuras no fio, reticências e lixo. Dói-me também, os ossos perdem a sua ordem, já não combinam, a mão onde apoio a cabeça acaba por atravessá-la. Cada pensamento se enterra na memória, tudo parece relutante, os lugares que inventei, perdi-os um a um, tive mapas, ia meter lá gente também, mas se hoje já não acredito os pássaros não sabem e trazem-me notícias. Seja como for, o tempo não nos parece adequado, as circunstâncias não se abrem, não nos dizem puto, fabricantes de mel em excesso, de casa trazemos um ritmo como um fósforo aceso, ameaçado, a intimidade toda de que somos capazes. Juntos somos anteriores a nós próprios. O telefone toca vez por outra lá em casa e ficamos doentes, preferimos adivinhar a atender, levar até ao fim as nossas suposições. Da vida já só aproveitamos a sugestão, o arranque. Já todos sepultámos sombras nossas de tanto insistir nos mesmos sítios, engendrámos o perfume de uns quantos jardins, um corpo causa habituação nos seus lugares predilectos, vício mútuo, e a solidão abala aquilo que a envolve, a quietude das coisas torna-se expressiva, parte-se-lhes a casca sem que nada se altere, imitam a respiração, agravam-na, gravando repetidas vezes até corromper, de tão sujo, o filme do silêncio, cheio de ressonâncias, ecos mortos. A luz tosse ao passar por nós querendo fazer-se notada. Que tristeza senhora. Para que os nossos olhos sejam claros há os exílios. De alguns versos, longínquos reflexos que trazemos decorados, fizemos o nosso chão. Mas a manhã, de uma ponta à outra, só nos leva à vida dos outros, assim, mais nos valem os bairros vulneráveis, furtivos entre as janelas distraidamente abertas, corpos de água e sabão em cantorias, os pequenos preparos, limão, salsa e cebolinho, dentes de alho, e este abandono de Agosto cai-nos bem, a cidade semivazia, o calor zonzo indo por ruas desertas, quase selvagens. Se fechas os olhos podes imaginar quantas catástrofes, cada uma mais doce que a anterior. Um idioma ardente enfim sobre a desgraça deste tempo.

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