terça-feira, agosto 23, 2016


Quero estar só como um enigma (Rafael Cadenas), a voz roubada, sombras querendo ser lidas, dispostas como letras, chego a ter sonhos nascidos de puras especulações verbais, visões cegas formando-se na obscuridade, rastos que saem e voltam ao ângulo mais chorado deste quarto, uns papéis, a voz a lápis baixo bem solta e, quebrado outro reflexo, procuro um espelho que se sirva de um pouco de realidade mas não a dos outros, mais empenhado, se abra ao reino dos encantadores da neblina, dias luzindo desterrados, alguma hipótese que nos tenha de pé, a meio de uma rua, com tantas lições na pele, historiadores de épocas como esta, abolidas, paisagens frias, fossos, a terra escondida e o veneno dos dias que passam e se desfazem de todo o sentido, rimas de ecos delapidados, ter a coragem de dar a vida a uma língua deserta, neste ofício suicida, semanas para balançar perfeitamente um verso, que talvez só possa ser lido décadas mais tarde, por dois ou três aflitos, no mesmo passo do mesmo caminho, abro a carne e do futuro deixam-me cair um punhado de terra no íntimo, como arqueólogos do nosso próprio tempo, é no sangue que se fazem as nossas descobertas, o fascínio diante do vaso quebrado há minutos, e, deitada, espreitando a ruína de todo o mundo, uma flor deixando-se morrer, isto: o decurso de uma vida numa frase, gerações respirando na mesma linha, esse artefacto levemente vibrando, melodia de mármore, uma mão cheia de nada lançando uma sombra à caça através dos séculos que virão, não outro vestígio da mesopotâmia, mas o instante a debater-se para não ser consumido pelo seguinte, e com ele eras perdidas, gestos soterrados, as mais espantosas e dilacerantes frases em línguas entretanto esquecidas, desse espelho um reflexo atravessando-me, enchendo o quarto, desdobrando-o num campo ao longe batido por relâmpagos, a lua desenterrando o seu brilho, com um ar vago polindo um capacete, a cabeça cortada nos teus joelhos e um arcaico enigma decifrado a dois.

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