quinta-feira, junho 23, 2016

para o João

Digamos que amanhece, que acordas
desses teus pesadelos cheios de talento
e ao redor da cama
dás com um bando de pássaros mortos
(tão mortos, tão imóveis, tão caídos...).

Os gatos também encolhem os ombros.

A casa é um eco que não acaba. Surda,
tem uma memória espantosa, mas já nada
de novo te aceita.

Erguendo-se no meio do tempo
sobre uma raiz secreta,
balança-se, tricotando os dias.

Tem as ranhuras do sol no pátio,
e por toda a parte, ligando as divisões,
fios de aranha e baba cristalina,
o reflexo de sempre na bacia entupida,
as flechas da infância e pedras
tão fundas.

Um relógio caído
a um canto, devorado por formigas,
e as horas fugidas, desmesuradas.

Esse deserto de porcelana, flores imóveis,
tudo petrificado num espelho morto
que dessangra reflexos antigos.

Uma nuvem cobre os espaços a que
a dor se habituou.
Lá fora, o vento já depôs as armas,
resta a chuva, o seu coruscar.

O silêncio bebe-a.

Um sol frio bebe leite nos escombros
da velha casa.
Com os dedos lês os detalhes
de que a luz cuidou, o gesto sombrio
da sua glória consumida.

Outra flecha
perdida entre a tua fragilidade
e o ruído de uma máquina de coser
no quarto, trancado há tanto tempo.

Digamos que anoitece, e no escuro
a tua lâmpada canta só,
põe ordem ao enredo e o seu círculo
alarga, sussurrante, embriagando
os mosquitos.

A máquina em que te bates,
como uma prece
depois de perdida a fé,
soa bem alto pela noite fora.

Face à hesitante ruína da casa,
quase a cair para dentro,
ouvindo o grito das pedras
, lanças-lhe um urro
que devolve o orgulho e a pose
à sua arquitectura.

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