domingo, maio 22, 2016

Laura Liuzzi


DE UMA MANHÃ

A praia sob a bruma
na primeira hora de luz
é um Turner improvável.
Não teria esse véu gris
sobre a baía que desperta
plena de certezas e pulmão
se não se ouvissem os bugios
no coração fundo da mata
a sugar a noite sem o mel
do dia, seca e sólida
arranhando a garganta
ancestral que anuncia
que quer nascer, quer nascer.


RETRATO DE SZYMBORSKA

Mesmo com os olhos
semicerrados
nota-se, atrás da nuvem
do cigarro
na leveza dos ombros
e pescoço esguio
na colher que descansa
sobre o pires
na dobra folgada
da manga da camisa
nos livros apoiados
sem pressão
na estante e na estante
quase vazia
atrás de si, ela
moça arguta
que sorve o mundo
como quem sorve
por hábito
o café.


SUCESSÃO

1.

Nota-se a instalação do tédio
no modo como os dedos do pé
se encolhem como minúsculos
animais marinhos à suspeita de
visitas. As almofadas parecem
zangadas e o jornal não tem
modos a essa altura da noite:
se esparrama, não deixa espaço
para o que não é notícia, embora
não haja assunto para preencher
o vazio que a música deixou
ou ao menos sobrepor-se a
o peso dos pequenos rumores
dos corpos na sala: a respiração
que não cabe na boca; os estalos
dos ossos acordando no sofá.
Ninguém parece ouvir lá de fora
as baforadas das ondas na praia
o esforço de gravidade da lua.


2.

Silêncio não é ausência de som.
É uma sintonia dos ruídos tal
que eles não se distinguem uns
dos outros. Se transparência não
é ausência de cor, mas passagem
da luz, silêncio é a passagem do som.


3.

A noite esconde o mar que esconde
os barcos que esconde os marinheiros
mas ninguém tem os olhos fechados.
Todos se espreitam e se ouvem
sem sabê-lo. Os livros aparados
na estante dizem o que dizem
quando estão fechados? Estariam
apenas em silêncio?
Não há palavra que toque a coisa
mas há palavra que a invente.
Atravessar o vazio da sala de meias
pode ser a solução para vencer
a âncora desta noite porque todas
as noites parecem não ter fim
até que venha o sol anunciar
que nada é tão complicado
quanto parecia. O dia sucede.


ESPIÃO

Não são mais os motivos da noite
mas os imperativos do dia
que escurecem as almas.
Ainda temos medo, Carlos.
Falta tudo aos homens
mas o que pensam que lhes falta
é o que lhes excede:
as armas contra a solidão
são sua máquina e sentença.

Há dias dou voltas em mim mesma
minha revolução particular
sobre o chão de chumbo da casa
onde se escondem seres microscópicos
às gargalhadas e aos borbotões
se multiplicam. Silenciosas explosões
deformam o rosto dentro da noite.

A percepção da chegada dos dias
lentos, esquecidos de suas tarefas.
Migalhas sobre a mesa: país estilhaçado.
Os homens espiam os homens
como corpos dados à autópsia.
Insuficiente é a investigação das causas
se viver é também um fenômeno.
Raro.


LINHA

Durou uma penca de anos
silencioso como um naufrágio
e tão fundo desci que hoje
tenho guelras e essa couraça
prateada refrata as lanças
solares que ora me embotaram
os olhos — agora, me acendem às três
horas de uma lenta madrugada.

Tenho poucos recursos: um par
de meias, outro de óculos.
Uma tangerina pela metade
para ver o centro da terra
o planeta de isopor, aquários
com miniaturas de tartarugas.
Parcos recursos. Pequenas
metáforas na concha da mão.

Existe uma linha invisível
de uma cor extraordinária
ela se enrosca nela mesma
e nas outras infinitas linhas
que trazemos presas aos
nossos calcanhares.

Se o corpo é a casa e o mapa é o corpo
formamos um improvável arquipélago
flutuamos ora perto ora longe
sem caixa de correios ou endereço
apenas a correspondência possível
entre o silêncio de ilha e os seus pássaros
remotos.

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