quinta-feira, maio 19, 2016

GOMORRA


 Texto publicado no jornal Lisboa, Capital, República, Popular


Cultura 365, cultura q.b., cultura 86-60-86, cultura e pluribus unum, cultura palito nos dentes, loja dos trezentos, cultura prêt-à-porter, cultura-rosário, paizinho-nosso, avé-maria nas baixezas, cultura defunta, culto da urna... Aqui fica uma adenda ao obituário a que todos andam tão dedicados

Tenho na cabeça as linhas gerais de uma esplendorosa diatribe. Isso e alguns garfos espetados em sítios estranhos. Levo a mão onde me dói e sempre, com surpresa, lá encontro outro. De todos os feitios, diferentes tamanhos. Alguns ferrugentos, de lata ou pobres metais, alguns quase de pau, outros de ligas nobres, com incrustações, autênticas relíquias. Alguns muito à superfície, outros em busca de órgãos vitais. Onde me dói percebo que alguma coisa está fora do lugar, pressinto uma fome inimiga.
Comecemos por aí. Andamos demasiado certos da importância da cultura. Da sua vitalidade essencial e capacidade transformadora. Pela minha parte, não posso fazer outra coisa senão levar as suspeitas a passear, distribuí-las, deixá-las farejar, fazer um mapa ciscando os cantos, e ladrar quando temos diante de nós um ajuntamento de pessoas. Sobretudo se as apanhamos em poses exclamativas, claques viradas sobre si mesmas.
Dá-me a impressão de que se vê cada vez pior o mundo daqui. Eu vejo-o mal ao perto e ao longe, tenho necessidade de ir lá com as mãos. O frio dos gestos próprios pressente inicialmente um certo calor, e logo algo de viscoso. A maior das minhas dificuldades são as coisas que se dizem. As grandiosidades com que andam na boca. Então quando me vêm com a ética... Estivessem calados e não daríamos por nada de muito estranho. Mas começam a falar e anunciam tais milagres que nos deixam a salivar, revirados de expectativas, ao ponto de ficarmos siderados de entusiasmo.
Passando um quarto de hora, logo essas lindíssimas intenções entram em decomposição, descem ao seu inferno e largam um cheiro que elabora uma certa náusea, se enturma entre as famílias da peste.
A sensação que tenho de há uns anos a esta parte, andando para cima e para baixo, atravessando-vos, e depois de ter posto as mãos em muita gente (podia dizer nomes; o mais certo era que dissesse o teu), de ter amassado alguns, é que todo este carnaval a entupir a avenida é uma forma de evitar o assunto. Dir-se-ia que odeiam todos a cultura. Uns muito, praticamente não têm outra ocupação, outros mais distraidamente, até sem querer, seguindo a confusão, pagando para ver, e vendo, aplaudindo até, porque os outros também, e não quiseram ficar de fora.
Ouve-se falar dos “outros” e lá vem a carroça infernal puxada por essa mula que o Sartre pôs no nosso caminho. O importante é notar o quanto esta ideia que fazemos dos outros é um pouco já da ordem do capitalismo, esse modelo dos cínicos. Basta acreditar que na base somos umas bestas e que, no fundo, não há volta a dar.
Para simplificar, venham os números, a sua eficácia exaustiva. Os números que hão-de ter tudo, que não precisam de se explicar porque têm o selo de garantia do que bate certo, do que se soma e subtrai, dobrando ou desdobrando, a razão muito útil das evidências. Mais é mais. Dois e dois nunca dá outra volta que não passe pelo quatro. Agarrado firmemente a esta certeza, e contra o campo de batalha onde se enfrentam as dúvidas, começa a maior das estupidezes do homem, a maior das suas covardias.
A cultura odeia inteligências e espíritos calculistas. Diz-nos tudo o que nos falta. Mundos de coisas desde logo inumeráveis. Pode-se fazer contas dentro de uma fantasia tal como fora, mas nenhuma equação ergue uma só coluna nos territórios da imaginação. A toda a hora a cultura é um martírio para os espíritos cínicos. Porque orienta contra a inclinação das coisas. A sua natureza é a do atrito, põe bombas nas partes íntimas da autoridade. Diz-nos sempre que está tudo errado, a começar pelo que bate certo. Dois e dois só dá quatro se não tivermos mais nada a acrescentar.
A matemática não faz a mínima puta de ideia do que estamos a falar. E ainda não chegámos às artes, nem, muito menos, à poesia. São assuntos complicados cuja natureza é descompor-nos. Mas sem explicarmos muito – mesmo porque não há ninguém para ser convencido –, digamos que o capitalismo é a coisa mais sem imaginação sobre a qual os homens já chegaram a acordo.
Há muitas maneiras de ver a questão, mas de uma forma ou de outra chega um momento em que um porco aparece feito eminência e garante-nos com base em minuciosas aritméticas, intermináveis folhas de cálculo do excel, que para nosso bem precisa de nos cagar em cima. Em troca, é claro, pagará (bem negociado) o nosso preço.
Chegamos a casa a feder e lavamo-nos. Escovamos com o maior afinco: por baixo dos braços, das unhas, nas pregas e orifícios, todos os lugares ofendidos postos a brilhar, e depois sentamo-nos, cheirosos, impecáveis, em frente à televisão ou outro ralo animado para distrair a vida que se escoa e, mesmo aí, comemos. Bem vestidos, bem alimentados.
Só que a merda entranha-se-nos. Porque por melhores hábitos de higiene, do que se trata é do tipo de porcarias que nos despejam em cima. Não há nada de errado com o capitalismo, está tudo certo. Só não espera nada de bom de nós. É uma disciplina sobre o nojo, e precisa que nos encaremos como um mais um mais um, ou antes, outro e outro e outro... Todos somos outros. Tudo começa e acaba num só. O mundo é visto a partir daí e a morrer aí. De resto, passamos a vida a tentar recuperar dessa inextinguível solidão para que tudo empurra.
Já a cultura, essa, não aceita parcelas, as coisas participam umas das outras, e alguém é tão mais culto quanto mais for capaz de detectar essas cadeias de relação espantosas e que, estando erradas, alargam a realidade. O tempo não tem tanto que ver com um antes e um depois mas com um ritmo. A cultura diz-nos sobre o desprendimento, sobre a escravidão voluntária dos hábitos que nos apoucam. Fazemo-nos cães das nossas circunstâncias.
Pior é que seguindo esta linha a cultura não é mais que um horizonte que recua a cada passo que damos, para nos satisfazer. Um dia vamos todos ser artistas. Actores de uma peça de um e para um só. Todas as noites com lotação esgotada. Lá estaremos, cada um de nós frente a si mesmo, parado, suspenso do fio de baba ao canto da boca, como quem bate palmas a si mesmo. Vítimas radiantes dessa vaidade que obriga a uma pulverização das atenções.
E estamos tão perto disso. A vasta razão produtiva, o forno de cada um bulindo, as editoras xerox, a proliferação de iniciativas, projectos, audácias frívolas, estes grupos teatrais para emboscar os familiares e amigos, mais alguns levados ao engano, alguns mais acidentalmente, que não sabem ao certo o quê, mas precisam, falta-lhes qualquer coisa. Querem juntar-se, como em tempos um tipo ia juntar-se ao circo. Vêm ao espectáculo e ficam até ao fim, ao fim do fim, com ar songa para cumprimentar os artistas, o produtor oferecendo-se a tudo como a um casting.
Vidas inteiras à espera de serem descobertas. Cada um em busca de ter as suas ambições legitimadas, diplomadas e emolduradas na parede. Já não uma cultura da excepção, mas da absoluta diversidade, todos flocos de neve únicos, uma encenação do espectáculo na escala de um por um, em que os outros são esse inferno que há que subornar um a um, para que aceitem fazer de figurantes, fazer número, fazer de público, audiência, auditório, um tribunal da mais ínfima, da mais falsa instância.
Estamos perdidos uns para os outros. Assembleias histéricas de comiseração. E a realidade que espelhamos é o nosso antagonista. O mundo sente-se inteiro do lado de fora. E nós trancados, chiu, cá dentro, que belos conspiradores, que planos, que força de vontade. Só derrotados pelos números. Incapazes de admirar mais a alguém. Nem falamos de narcisismo, falamos já de afogados. Esta perseverança doentia, este jeito doseado de querermos aos outros. Não vejam nisto qualquer forma de pessimismo. Estou seguro de que estamos no bom caminho. Aos poucos vamos pondo fogo, Neros tristes olhando da janela de cada quarto enquanto tudo arde. Não creio que a este incêndio de pequenos egos, vaidades insaciáveis, possa resistir seja o que for. A maior de todas as imoralidades é o desinteresse, a indiferença, o vazio que tira do prato da paixão.

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É contra-intuitiva a ideia de que a própria aceleração produza uma colisão que não acaba, um desastre de proporções que não chegamos nunca a poder admirar porque estamos imersos nessa debandada, num ritmo frenético que copiamos com o sangue.
É-nos difícil conceber que a velocidade possa significar outra coisa que não o progresso. Mas, como notava Blake, sem a oposição, o jogo de forças contrárias, nunca chega a haver progressão.
Esta besta locomotora agrega os nossos impulsos, consome-os no seu fôlego, tornando-nos uma espécie com as emoções atreladas a uma bateria ansiosa, só vindo à tona do cansaço para respirar assustadamente para logo mergulhar de novo e tomar o lugar nesta corrente incansável. Uma composição que atravessa as paisagens e as mistura, dissolve umas nas outras, criando uma vertigem que coloca a atenção de joelhos, encadeada, comungando aflitivamente dos fenómenos de que participa com a incredulidade e o encanto das vítimas.
Não há desembarque, tudo muscula esta mecânica delirante. Das janelas observamos uma explosão serena. Como nunca ficamos para trás, o rumor da destruição não nos convence. Receando falhar uma batida, empregamos inteiramente as pulsações, timoratos, registando tudo, incapazes de conservar mais que a sensação de uma constante descolagem, uma ausência ou atraso exasperante. Este comboio fugitivo deixa a própria vida para trás. Humilha todos os horizontes.
O gesto de um homem é imediatamente assumido por centenas, milhares, uma reprodução de uns (1,1,1) seguidos de cadeias de zeros (000) até à exaustão. Aqui, a moral dos seres actuais descorporiza paixão e acção. Quem diria que o pior dos nossos acidentes seria sermos incapazes de travar. Que a máquina se impusesse não por uma inteligência artificial capaz de consumir os nossos melhores instintos, virando-os contra nós, mas simplesmente dominando a maior de todas as nossas ficções: o tempo. Esse deus indisputado.
Entontecidos, os sentidos não nos dizem nada. Agarramo-nos ao freio e ele só nos diz que nos faltam as forças. Para sair é preciso saltar a meio do andamento cada vez mais intenso desta alucinada centopeia atropelando tudo, desta galé imensa cujos remadores com o impulso dos braços secam o mar. Cada instante de indecisão, hesitação, reunindo coragem, só oferece mais tempo para que a aceleração se torne ainda mais persuasiva, a sua fúria mais temível. Saltar é arriscar ser esfolado vivo antes que o corpo consiga recuperar o chão. Quem sai fora torna-se invisível, quem segue dentro permanece cego.

 

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