quarta-feira, maio 11, 2016


a chuva tirou-lhe a roupa aqui
adianto o pé, levanto um pouco
de terra, persigo a alça do
vestido
digo-me que se o sangue falhar
não estarei longe

olhei-a com toda a
luz e toda a escuridão que tenho

se quisesse dizê-lo mais alto
o difícil seria não ter por onde começar
que estas coisas nascem e morrem
sem um nome

por esta altura bebi o chá até ao fim
o último cigarro caiu-me dos lábios
quando dormia, o fogo levou
o que quis, por esta altura
chorei como todos fazem
nas paredes, em letras tremidas
recuperei o que perdi
mais para sentir nos ossos da mão
desenvolver-se a dor

o vento voltou
e o que juntei já se espalhou
nas intimidades do arvoredo

daqui até ali a rua tornou-se impossível
os canários insultam-se de janela
a janela entre os lençóis
nos estendais
agitando-se quando uma insinuação
marinha faz a cama no ar

cansado de passar ferido
pela sua música canalha e erudita
hoje é-me claro como tardando ou não
os pássaros acabam por domesticar-nos

ao passo que do seu reino mudo o gato
com a lenta vertigem do olhar
anota os defeitos da vida
e ao afastar-se deixa a impressão
de um verso cuja ordem mágica
não conseguimos retomar

ninguém esperava do inferno
que fosse só isto, tão despido de exageros
do espavento do terror
não a mesa posta um relógio alto
e o pão partido com um tipo de gente
que parece copiada à vista
com uns olhares inventados
cheios de uma estúpida bondade

outros ruindo de parte
com passos de quem limpa as ruas
levando para dentro coisas frias
coleccionando vestígios
de que falamos
para nos parecerem reais
todas essas histórias que se calam
connosco dentro

eles escrevem poemas
em que falam contra a poesia
desgraçam-na com todos os pormenores
deliciados com a mais baixa biografia

como exigem pouco da realidade
e queixam-se que hoje não se lê poesia
mas ler o quê?
esse tímido namoro à morte
que a cada dia morrem como gado
atropelado fugindo
do menor prenúncio de guerra

as estações fogem umas pelas outras
as folhas caindo e depois
nem um barulho,
juntam-se, enterram-se a si mesmas
outras enegrecem, viram barcos
e de cada tanque fazem um porto
mendigando um rumo às estrelas

mas nós já nem com o mar contamos,
lemos no seu silêncio
um final terrível:
os navios não zarparão,
as ilhas remotas não existem


para não se ser arrastado para lá de si
um tipo arma-se daquilo que lê
contra o mundo esse tráfico
de nuvens injuriosas
num céu que sobre nós se partiu

o dia é ganho marcando uma página,
alguma frase que nos sirva de apoio
mesmo depois de mortos

os dias encurtam,
o sol larga os ossos pelo caminho
a tarde vem-se desabotoando
as noites já chegam de joelhos
e abatem-se nos nossos quartos

fico no escuro com um gesto
e dois olhos ou mais
a respiração silenciosa atenta
devorando fantasmas
guardo sons que trabalho, racho
o meu sino devagar

nunca mais verei um beijo
de perder o rosto a voz e o nome
sinto apenas de longe o cheiro a sabão
uma vela reabrindo o corredor
com um cuidado descalço
vertendo o silêncio
de um cântaro para outro

coisas que se repetem de uma ponta
à outra da alma
a distância que nos cabe segurar
para que deste mundo não se diga
que não houve mais quem lhe escapasse vivo

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