sexta-feira, abril 01, 2016

Sophia de Mello Breyner, cultura contra a cultura


[Intervenção da poeta na Assembleia Constituinte, a 3 de Setembro de 1975, sobre os artigos da Constituição que na sua redacção final teriam os números 42 e 43, relativos à "Liberdade de criação cultural" e "Liberdade de aprender e ensinar"]
«Num país e num mundo onde há doentes sem cama e doentes sem tratamento e sem hospital a questão da liberdade artística e intelectual pode parecer uma questão secundária. Mas sabemos que a cultura influi radicalmente na estrutura social e na estrutura política. E por isso a questão da liberdade da cultura é uma questão primordial.
E sabemos que toda a cultura real trabalha para a libertação do homem e que por isso toda a "cultura real" é, na sua raiz, revolucionária. E sabemos que não poderemos construir de facto o socialismo se não ultrapassarmos o uso burguês da cultura. Pois a cultura não é um luxo de privilegiados, mas uma necessidade fundamental de todos os homens e de todas as comunidades.
A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar - para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução, é exactamente porque é capaz de criar a cultura. Como disse Amílcar Cabral, na frase há dias citada por Manuel Alegre, "a revolução é um acto cultural". E é por isso que existe sempre uma profunda unidade entre a liberdade de um povo e a liberdade do intelectual e do artista.
Não é por acaso que o Chile é neste momento o país do Mundo onde há mais intelectuais presos. No princípio da guerra de Espanha, na Universidade de Salamanca, o general Milan Astray gritou: "Morra a inteligência". Este grito pertence à essência do fascismo. Durante quarenta e oito anos a maioria dos escritores, artistas e intelectuais portugueses lutaram contra o fascismo. E ao lutar sabiam que não lutavam apenas pela sua liberdade, que não lutavam por uma "liberdade especializada", mas que lutavam pela libertação do povo a que pertencem e pela justiça e pela verdade da vida.
E a liberdade de expressão e de cultura, e nomeadamente a liberdade de crítica, é intrinsecamente necessária à busca e à construção da justiça. A justiça não se constrói com dogmatismos indiscutíveis, nem com maximalismos irreais, nem com demagogia, nem com cabotinismo cultural.
Precisamos de uma revolução culturalmente apta a fazer constantemente o seu exame de consciência. A verdadeira vigilância revolucionária é a lucidez revolucionária. Sem liberdade de crítica nunca se pode aprender verdadeiramente "a lição do erro". Sem liberdade crítica não há cultura verdadeiramente participante. A crítica é orgânica.
Somos um país que tem às costas séculos de inquisição e meio século de fascismo, com censura, prisões, escritores e pintores e intelectuais exilados, livros proibidos, exposições proibidas, projectos que nunca se ergueram. E vivemos num tempo em que nos países totalitários do Leste e do Ocidente aqueles intelectuais que têm a coragem de falar têm expiado e expiam essa coragem nos campos de concentração, nas prisões, nos asilos psiquiátricos. 
De tudo isto queremos emergir. Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política. Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política, sempre que quer dirigir a cultura, engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anticultura e toda a anticultura é reaccionária.
O poder totalitário persegue o intelectual e procura manipular a cultura, transformando-a em luxo.
Não aceitamos a cultura como luxo de privilegiados nem como superioridade de eleitos. O lugar da cultura é a comunidade. Ultrapassar o uso burguês da cultura e pôr a cultura em comum é uma tarefa essencial do socialismo. Mas esta tarefa é uma tarefa de invenção. E inventar é uma tarefa da liberdade.
Por isso, toda a população tem direito à inviolabilidade e à livre expressão das formas de cultura que lhe são próprias. Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura.
Não podemos aceitar o paternalismo cultural.
A cultura dos trabalhadores rurais, dos pescadores, a cultura das aldeias longínquas, não é uma cultura menor. E se essa cultura está paralisada pelo isolamento, esmagada e traumatizada pela pobreza e em muitos aspectos já semidestruída, no entanto, ela permanece, na sua raíz, uma semente de revolução, pois é uma cultura não burguesa, uma cultura integrada no trabalho e na vida, uma cultura do comportamento humano. E o encontro com essa cultura ajudará a ultrapassarmos o uso burguê da cultura.
No artigo intitulado "Gente da esquerda, renovai-vos", Jean Marte Domenach, ao falar da renovação da esquerda, escreve: "Eu mantenho que este projecto exige uma conversão intelectual. Não se trata de opor um novo obscurantismo à ciência e à técnica, mas sim de nos subtrairmos ao seu domínio e às suas fatalidades. Pois não é só o capitalismo que devemos condenar, mas também a cultura que o propôs." (...)»


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