quarta-feira, março 16, 2016


era miúdo, trazia más notas
para casa, em troca
tinha a paciência de um mentecapto,
no quintal, agachado, o dia inteiro
de olho numa fechadura
sem incomodar ninguém horas ficava
a espiar galáxias
a minha era uma solidão cósmica

nos dias mais terra-a-terra
escavávamos eu e o cão
em busca dos nossos iguais
atrás de cada passo do vento lia
na porcaria de caminhos que tinha
os sinais enferrujados, a língua vagabunda
da vida que fugiu desta

então as palavras eram o
modo de atiçar, fazer crescer
as coisas,
dar-lhes corda,
a beleza ainda era longe
só passaria naqueles lugares anos
mais tarde,
a professora substituta,
os meus primeiros ensaios com a paisagem,

até ali para que serviam
as flores e os livros,
tantos nomes,
a porta do quarto?

A janela era só a moldura
para a árvore alta que, no largo,
vez por outra prendia uma nuvem

o rádio ficava de vigia,
a rua parecia aumentar de volume
quando ela subia
acreditei em pressentimentos,
encantações, a música
aos pés dela,
ia vê-la, esperava, seguia-a
levava o resto da tarde
a estudar como podia expor-lhe o meu caso
que coisas, que mundo dizer-lhe

três meses e pouco
passeando à beira de água, sentindo-me
olhado, na última semana
tirei o meu primeiro bom+
depois voltou a outra da licença
e as notas logo desabaram

descobri que nem sabia já
fazer-me companhia,
arrancando o escuro, despetalando-o
junto à aranha com a sua constelação de morte,
lembrava um cego de roupão ao piano,
deliciada com o som das articulações
de cada insecto
sonhando engolir a própria lua
quem sabe o sol

um rio todo penumbra passava ali
cortando ao meio a casa
o silêncio ficou sonâmbulo, batendo
os cantos,
no quintal, os pássaros desciam
sobre as costelas da tarde
e a respiração ficou mais pesada

as distâncias chamavam-se
e tudo o que ficava no meio se abatia

as ruas ainda correm atrás de brilhos mortos,
um som parecido nasce e logo
como moscas um bando zumbe
em volta, ruídos que ficam
a olhar para trás,
esse eco balançando-se
de garras crispadas
no poleiro da memória

desde que a dor aprendeu o caminho
volta quando quer,
vem ver a sombra que vos tornais
o estado de decomposição

tiveste um corpo porque outro
to disse, e depois do corpo
só restavam os nomes
e as palavras que morriam entre eles

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