Versão completa do texto que sairá no próximo Cadernos do Subterrâneo
O ÚLTIMO DOS ÚLTIMOS
Admitamos que vivemos um tempo menos febril do que o que gosta de se fazer passar, menos dos excessos e das grandes torrentes do que nervoso, espasmódico, algo viscoso. Não é certo, assim, dizer que corra, antes que escorre. Um tempo que falta a si mesmo, como faltasse o chão, em que qualquer convicção é trocada por um humor passageiro, tornando-se tudo temporário. O tempo é a sua própria questão. Mais que o ser, antes o ser em que momento. E o principal sentido é o da ausência, um espírito flutuante, que precisa ser levado em ombros, andar a par, não entre a multidão, mas carregado por ela, a cada passo olhando em redor, esvaziando o risco. Uma era da aceitação contra uma da cultura que levanta no espírito a suspeita e leva um homem a uma atitude de recusa. Nunca o passado nos terá sabido tanto a futuro. E assim, ler as obras dos velhos é um cair da cadeira, cair abaixo de si mesmo, da ilusão de que se estava à frente. Porque o tempo que se entregou a fundo perdido, às maiores insignificâncias parece perdido. O tempo que se entregava todo a uma frase, esse que vive e ergue a sua torre da insistência, de um ranger de dentes que se apura até lhe sair pela boca uma borboleta, o do verso entregue pela luz da lâmpada à do amanhecer e pela do anoitecer de volta àquela, entressonhado, posto sob quarentena, um verso que soa solto, grave como uma interjeição, suave como um partir de casca por uma força que lhe vem de dentro. Um que está ali quieto na página, mas que se desdobra em imensidade a partir do momento em que lhe damos a menor hipótese. Citemos quem sabe: “Em defesa de Mallarmé, afirmou Valéry, certa vez, que o trabalho severo, em literatura, se manifesta e se opera por meio de recusas; pode-se dizer que ele é medido pelo número de recusas. A melhor poesia que se praticou em nosso tempo passou por esse crivo. Da recusa estética (Mallarmé) à recusa ética (Tzvietáieva), se é que ambas não estão confundidas numa só, essa poesia, baluarte contra o fácil, o convencional e o impositivo, ficou à margem e precisa, de quando em vez, ser lembrada para que a sua grandeza essencial avulte sobre o aviltamento dos cosméticos culturais.” (Augusto de Campos, “Poesia da Recusa”). O efeito de se gostar um pouco de tanta coisa, da atenção se multiplicar, leva a que nenhuma das coisas assuma a sua plena intenção. Não há hoje em Portugal outro poeta que sofra uma tão entristecedora desatenção do seu tempo como António Barahona. Com a sua poesia inspirada em chão clássico, não escreve – ele que hoje, sobretudo, se reescreve furiosamente, como quem não tem nada que legar que não as próprias linhas do seu testamento, e as aperfeiçoa afincadamente para que o mundo se deslumbre encadeado no feitiço dos seus ecos – não escreve, dizia, interessado em fazer pasmar os deste tempo, mas o seu é o ofício de quem ombreia com os de todo o tempo. E é tão natural lê-lo ao lado de Cesário, Pessanha ou Camões, como de Rilke ou Goethe. Ora confirmem: “Vou misturar-me aos pastores, / Dessedentar-me em oásis, / Ao andar co’as caravanas, / Vender chales, café e almíscar; / Palmilharei cada atalho / Desde o deserto às cidades. // Por maus caminhos de fragas, / Teus versos, Hafiz, confortam, / Quando o guia, deleitado, / Montado no macho, canta / Para que os astros acordem (...) “Absorvo os meus limites com uma estratégia d’infinito: / recuso o limiar, vou além do livro, continuo a escrever pelo sobrado e pelas paredes acima até ao Céu (…) Escrever é uma súplica sem nenhum pedido: / só a substância do poema recompensa este esforço de manter o rumo do rumor, / rasurado a cada passo / (rasura sobre rasura até rasgar o papel) / rótulo tatuado na pele do mar / a fim de assinalar o ponto da garrafa do corsário / há mil anos afogado a rir e a brincar com peixes”. Antonio Machado, outro poeta com quem Barahona partilha a intensidade do “fluxo de sangue em cada verso”, a dolorosa paciência que serve melhor a alegria e o gosto de fundir poemas e cantares, indicou certa vez que se o obrigassem a eleger, de entre todos, um poeta, Virgílio era a sua escolha. Não por qualquer das obras que o imortalizaram, mas antes de tudo por ter dado “asilo nos seus poemas a tantos belos versos de outros poetas, sem dar-se ao trabalho de desfigurá-los”. Barahona deixa acesas nos seus versos todas as luzes de presença que os atravessam, honra devidamente o sentido de convivência dos espíritos mais afinados que se comunicam ao longo das eras, é um desses cada vez mais raros a quem a poesia não interessa como um rosto contido num reflexo de um determinado tempo, interessa-lhe a própria natureza dos espelhos, essa arte sagaz sobre a qual o tempo não consegue passar.
1 comentário:
Coisa boa de ler... excelente!
Enviar um comentário