sábado, dezembro 19, 2015


Noite de solidão e tranquilidade,
memória e esquecimento,
terraplanagem dos acidentes coriáceos que ficaram na pele
depois do que não vale a pena lembrar
e que resumo a chuva de peixes, meteoritos,
ao som de um contrabaixo antiquíssimo a embater na pedra,
qualquer coisa dessas, tão dificilmente explicáveis
como uma barragem para um salmão.


Nessa noite, mais do que sempre, apraz-me regressar
a um romance relido vezes sem conta,
de cuja acção não faço ideia
por dele me interessar apenas a bruma
e o sóbrio padrão dos sobretudos.
Julgo merecer, ao menos, o conforto elementar
de quem atravessa uma praça desconhecida
de uma cidade desconhecida
sem outro pensamento que não seja a alacridade
de um queijo azul ou de um vinho.


Do tempo em que a minha respiração não produzia som
ficou-me a prestidigitação de olhar para dentro
e ver, com nítidos detalhes, a Revolução Francesa
enquanto, com a unha do indicador, desmancho a carcaça
                                                                        de uma rês
magra de mais para a ceia dos que amo
com a morte pelo meio.


Nessa noite, tanto me faz ser calvo como vil
como apagado escrivão de todas as inutilidades.
Não há, sequer, beldades vestidas de seda escorrendo
                                                                        pelas paredes
como as que vejo sempre que um tijolo me é insuportável
por ser, apenas, um tijolo – argila seca
cuja forma rectilínea não se deixa confundir com uma
                                                       daquelas paisagens
terríveis e maravilhosas.


Nasci ocidental e, com isso, diminuído no espaço
e aparado nas ideias. Completam-me o retrato uma fragrância
a violetas nas axilas e um hálito a Balzac
que vai dos meus pensamentos mais íntimos ao fundo
                                                                          do balcão.
Seja.
E, ainda assim, a morte de um teurgo do meio do deserto,
há mais de dois mil anos,
é uma cobra minúscula mordendo-me a nuca
e incitando-me a pecar
cada vez melhor
porque a isso se resume a santidade possível.

- Miguel Martins

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