terça-feira, dezembro 22, 2015

Joana Morais Varela



E viajamos num filme a preto e branco,
Nicholas Ray não sei de quando, por
certo muito antigo, o carro é velho.
Há luzes na floresta, faróis acesos
em honra destes dois desesperados,
por bagagem corpos nus e muita fome,
o teu rosto cadeira de convés do meu navio.
Amantes sem dinheiro, dizia o outro,
o outro és tu que eu reconstituo película a película,
gota de sangue no meu ombro esquerdo.
Há balas nos hotéis, pequenas armas fúteis,
mas nós não temos nem norte, nem casa, nem um corpo,
só viajamos de noite por dentro da floresta.
Já roubámos o que nos era devido:
apenas resta esperar que o céu ainda esteja à nossa espera
ou um genérico final onde até o nome se dilua no piano.



E sais daqui como a doença frágil,
uma febre ligeira, os passos que se afastam.
Voltamos sempre, pontualidade admirável dos amantes
ao mesmo sítio, simétrico de ti, simétrico de mim,
sem desespero por sermos cegos, surdos, mudos,
ao mundo outrora feito de sorrisos e de rostos,
de ternas companhias de passagem.
És tu o meu destino ou inventámos uma fábula
de leões que se devoram toda a noite,
 mastigando os nervos, rindo de olhos claros à mais profunda dor:
se eu cair, arrasto-te comigo, come o meu coração até agora intacto,
guardei esta nobreza para ti, não sabia mesmo que tinha um coração.
Deixa-me por enquanto a veia mais vermelha,
 com ela hei de cobrir a tua boca quando,
aurora despontada, os outros nos olharem e disserem
era uma vez, mas não podem, nem sabem como a carne
era terna e o mais ligeiro gesto pode ser ainda a despedida.


Nunca chegarás cansado ao fim do dia
e eu numa cadeira à tua espera:
a casa que fizemos não tem móveis,
o trabalho dá saúde mas chateia.
Há água, alguns salpicos de sangue na banheira,
estaremos sempre nus e viciados o bastante
para bastarmos um ao outro, em nome dos meus outros,
em nome da cabeça dos teus outros.
Sacrificamos um carneiro à sorte,
blasfemamos por causa do meu corpo,
há uma timidez no fim que nós sabemos,
meu inocente pecador de cada noite,
poupemo-nos aos rituais cruéis dessa tristeza,
pão nosso cada dia nos dão hoje,
ruído, pouca música, muito medo.


Palavras só as dá quem as merece
porque seus dias abriu à margem desse rio
e, numa hora de tristeza pôde
transformar-se à luz dessa soleira.
Por vezes conseguiu até comer, alimentar-se,
os frescos vegetais a esse azeite colorir
num lençol de névoa adormecer
e num frasco de sal entorpecer-se.
De palavras fingir suas verdades,
palavras só as dar a quem merece.


(1983/84)

retirado daqui

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