domingo, novembro 08, 2015

Vitor Silva Tavares, 7.11. 2015


Virá de facto um tempo em que não haverá palavras. Não, como foi antes, porque as que fazem a diferença nos são proibidas, mas porque deixámos de fazer caso delas, de realmente sentir o peso da colher na boca, do modo como tomamos o mundo e dele fazemos eco, com vontade de o transformar. Estarrecidos, os desse tempo que se sente já à porta, estarão à mercê de todos os ventos, por lhes faltar a capacidade de se entenderem a si mesmos e, logo, de se fazerem entender. Serão algo como seres balbuciantes, à procura das palavras, gaguejando sem razão, incapazes de as encontrar, vítimas das circunstâncias por não poderem sequer responder-lhes com uma acusação firme, arrebatar os ânimos de quem ouve, esse talento que é – contando com a pior das desvantagens, a numérica – ainda assim virar o jogo a seu favor. Um homem é acima de tudo a sua persuasão. É ele e as suas redondezas, a vida que afecta e a abertura a que convida. “Chama-se um homem ao que sabe o que está fazendo”, escreveu Manuel de Castro. Há alguma ideia que nos diga tanto sobre o Vitor como esta?
Para começar, é importante que um homem tenha a sua palavra, que se perceba que escolheu esta e não aquela. É necessário que a tenha até para dá-la, para que a palavra seja o gesto inequívoco, um sinal. O melhor, senão mesmo o único gesto com significado entre os deste tempo é puxar da carteira. E a confiança vem das instituições, das garantias que se podem fazer valer nos tribunais. Um sinal é há muito uma coisa que se paga. Está-se mesmo a ver a asneira em que andamos metidos. O Vitor tinha estas coisas para si muito claras. Havia uma infinita consequência nas suas palavras. Tudo o que vinha dele nos dizia que ASSIM não se pode, ASSIM não vamos, e não é longe, que isso podemos ir, muito longe, longe demais, o que não vamos é juntos: vamos separados, uns por cima dos outros, dos cadáveres dos outros, que ASSIM vamos mas dilacerados, que, ASSIM, só triunfam os porcos. Deixem-me ler-vos uns versos dele, uns versos do PÚSIAS, que editou com tão invejável contentamento, num gesto cúmplice, como ele fazia questão que fossem os seus, entre amigos, gente com quem se pode, como o Rui Azevedo Ribeiro, o Luís Henriques, o Ricardo Álvaro. “Como se alguém arrancasse a cabeça/ e a escondesse no bolso das calças/ de forma a que a luz esquecesse depressa/ ter entrado sempre por janelas falsas// Como se alguém sem o saber dissesse/ adeus muito antes da hora da verdade/ e ficasse à esquina de tudo o que acontece/ e a peste estourasse na cidade”.
Fazer elogios esconde sempre algo de pretensioso. Como se estivéssemos à altura de reconhecer a verdadeira vida quando ela se cruza com a nossa. Por isso é que esta descarada indústria do bem-estar afectivo, do conforto e dos luxos da palmadinha nas costas não tinha o Vitor nem em primeiro nem no último lugar da fila. Ele simplesmente não se dava a esses banhos. Há, no entanto, coisas que foi ele quem deixou mesmo muito evidentes. Como ele não tinha pachorra para a balada da boa consciência moral destes tempos, a sua camuflagem de cores berrantes, a sua insidiosa escala de valores. Não há hoje quem não vá receber um prémio, levantar o cheque, sem fazer uma declaração a favor das vítimas mais à mão, as grécias sucessivas, trituradas pelo gigante aparelho que marca as horas com a mesma pontualidade com que os prémios marcam os segundos. Que se atrevessem a fazer o que ele fez, não comer nunca desse pão, mesmo que não fosse pão mas algo de deixar esganado o apetite de qualquer um. Todos estamos lembrados quando aqui há uns tempos um desses esquemas atávicos quis premiar a &etc, e o fez sem nem pedir licença. Claro, os prémios só nos fazem bem. Só que não, insistiu o Vitor, logo se apressando a rectificar que o tinham feito à revelia daquela casa que não aceitava misturas. Ali, fosse para o bem ou para o mal, não caíria “um pingo de merda”, frisou o Vitor, esse pingo que é sempre o suficiente para manchar, para contaminar, espalhar o mau cheiro. Porque como outro amigo seu tinha sublinhado, isto anda tudo ligado. Então é preciso cortar essa luz geral, nem que um tipo acabe a ler linha a linha de um livro na pressa dos fósforos.
É um exercício especulativo, e ele sempre condenaria algo nessa linha, mas por hipótese académica (outra das linhas com que ele nunca se coseu) perguntemo-nos se ele não poderia ter feito a sua fortunaça, se não lhe teria sido fácil encher-se como fizeram tantos, como fazem, os que se resignaram com a cultura como mero álibi, espectáculo de ilusionismo para uma sociedade que se elanguescia nas vénias eternas aos altos e redondos valores, o grande destino dos homens. Mas logo se marimbava e só se comprometia com a grande aventura cínica de todos os tempos – o lucro, a acumulação –, e encorajava mais que tudo a vocação doentia do homo-kapitális, que, como sabem, vem do grego, ka-caralhos o fodam. O Vitor não estava muito para aí virado. As suas propriedades eram outras. A riqueza é um modo de se escapar à miséria, ajudando a ela, pisando, deixando todos para trás. Ora, para trás ficariam sempre aqueles que mais interessavam ao Vitor. Então ele ficou, até à última. Sem se queixar, disse certa vez que lhe custava não ter o dinheiro para comprar às vezes este ou aquele livro que via nalguma montra. Os tantos livros que fez são de um homem que até ao fim aceitou o compromisso com essa materialidade, o seu valor e, portanto, o que esta lhe exigia. Porque um objecto, seja qual for, mesmo um livro, que se reproduz sem fortes critérios, sem espírito de exigência, apenas contribui para uma cultura de lixo, de desperdício, e assim nos antecipa a morte. O Vitor manifestou-se sempre, sempre contra esta vida de lixo que nos afoga, os prejuízos que lega uma cultura de escravos voluntários. Uma cultura que deve a sua vida em juros. Deixem-me citá-lo a ele para que fique mais claro: “Que é sempre tarde. E é cedo sempre. Independente do cadáver adiado e da sua circunstância histórica, o real movimento do espírito humano não cultiva relações com cronómetros e calendários, as ondas magnéticas vertiginam por espaços e eras, sem atrás, sem à frente, sem baixo, sem cimo, sem ida e sem volta. O que é que pois importa, nesta irradiação, sublinhar-se primeiro como certificado de valor ou louro de efeméride se de cada «novidade» na anedota dos ismos se desenha apenas o jeito da farpela, o ademane?”
Porque passou sem a menor das pressas, tão sereno que nunca abdicou da vida em troca da tão acessível (mas baixa) glória servida a quem quer que mime umas distracções com ritmo e graça no papel, o Vitor esforçou-se, pelos seus meios, e com quanta luz pôde sem fazer um gato, para depois ir alimentar-se na tal rede geral, como fazem muitos dos projectos que hoje correm com o selo das editoras independentes. A essas será difícil responder: Mas independentes do quê? Quanto à &etc, está muito claro tudo aquilo de que não dependia. Mas há algo ainda mais importante. Basta passar os olhos pelo catálogo da editora. Além de todos os nomes, os grandes nomes que não estão nas capas, que muitas vezes estão por trás destas, a inspiração, o apuro, o gosto crescido a tantas mãos, o que esta diversidade de gente, de contributos, o que esta abertura nos diz sobre o Vitor. Como ele operou essa ligação. Quarenta e dois anos não é apenas tempo, é uma forma de clareza, e sobretudo os quarenta e dois anos de um projecto, que desde logo nunca foi um projecto, e que, se não se explicava ao nascer, se parecia deslocado, um prodígio em contramão, tendo chegado aos nossos dias o que se pode dizer dele? No fim, a &etc talvez já nem teimasse em resistir. Os livros, sim, iam aparecendo. Tinham-se vendido aos milhares e agora, com dificuldade, umas poucas centenas. Uma vez mais os números não lhe valiam. Mas que persuasão. E há ainda uma acusação fortíssima, essa simples lembrança de que a literatura sempre foi a agência dos que não têm outra escolha, os que se perdem no que dizem, não os loucos-loucos, mas esses que só fazem sentido mais à frente, frente a quem tem a paciência de ouvi-los até ao fim – e ouvir até ao fim é sempre ler. Ler esses que perdem as estribeiras, os danados que se danam mesmo, que não têm a menor condição de fazer parte do espectáculo, e ASSIM dão à costa, náufragos de tudo. Nenhum homem é uma ilha... Esta é uma regra lixada pelas excepções que lhe fogem. A literatura é essa costa a que estes dão, Crusoés a mandarem sinais, desesperadamente, a tentarem fazer-se ouvir lá das suas solidões brutais, feridas. Porque a vida, nas suas cruezas, lhes sabe a inferno e eles escrevem como possuídos, tratando do seu próprio exorcismo.
Depois da morte do Vitor Silva Tavares, uma noite como esta para que serve? Mais do que homenageá-lo, para reencontrá-lo. Queremos agradecer a quem aceitou o convite para estar aqui. Os amigos do Vitor, os companheiros, os cúmplices. O melhor de uma noite destas seria que o Vitor quisesse cá estar. Que lhe dêmos bons motivos, não só esta noite. Ele deixou claro que prescindia também das cerimónia fúnebres. Estamos aqui para falarmos das coisas de que ele gostava, daquilo que o tinha empenhado e de como os tantos encontros, a partilha, os esforços conjuntos, a vida que ele possibilitou continuam a ser necessários.

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