Porque tudo caminha inspirado em si mesmo.
Herberto Helder
A esta distância estremeço espelhos,
gosto como fico lá ao fundo,
fisga e fita métrica para tirar nota
a quedas e proporções, um remo
feito ceptro de quantos poderes,
os caroços todos de um cerejal indo
pelos caminhos, cuspidos,
espalhados pelo mais vasto entardecer.
Não tinha, não tenho livros, mas as
chaves da sombra, um mapa dos cantos
suaves de embalo; ir direito à corda namorar
aquele cheiro a trevo e a leite que se
desprende do vestido. Queria
os dias intactos,
contornando pelo lado que direis da
infância – passasse por aqui uma
estrada romana, o melhor esforço
da antiguidade, até o chilrear dos pássaros
a preto e branco, ou cores de ferrugem –
mas é engano vosso, estou bem aqui.
Bebo uma cerveja, como toda a gente,
o mundo começa a apagar-se,
e o resto virá de surpresa.
Como a noite se decompõe, certa
das suas simetrias, noite que dará
(ainda vamos ver como) para essa
manhã metade flor metade
cinza nos lençóis, a transparência
da carne entre sombras que se esforçam
por voltar a ser homem, mulher.
Tudo é o chão de tudo, apanhas
a chávena rachada, no corte um brilho
de mel, começa a tocar o disco
do que ficou lá fora – onde ia a conversa,
os passos que a imaginação ainda escuta.
Busco a mesa miserável
entre luzes arrancadas, reunidos
estilhaços, à deriva, e o sangue sentido de
tudo, rimas desvanecidas, com o mar
ancorado nos versos, as ondas contadas,
um veneno que se arrasta através da espuma.
Tomam a forma da nossa idade as coisas,
o mundo que puxas, deixas secar
na página, uma língua de fósforos
alumbrando rastros, mais falada
no sono, num apertado nó de imagens.
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