quinta-feira, agosto 27, 2015


Na verdade, sempre soube que tudo se resume a um charuto
                                                                                      indolente.
Mesmo quando fingia incendiar paixões, pensava já no exílio,
no outro lado da fronteira,
na espreguiçadeira em que haveria de contemplar o Bósforo
                                                                                       ou a raia,
rodeado por escaravelhos de ouro, licores gelados, odaliscas,
romances de aventuras e velhos tratados de política,
enquanto, ao longe, a guerra se resumia a um
                                                                      papaguear sumido
num transístor charmoso,
obliterado por um oud e o arfar (dorido, resignado e perfumado
                                                                      de anis)
de Ilona, a jovem prostituta húngara.
Sempre soube que o mar não é aqui,
que este mar que nos coube é um mar retórico,
que, como o horizonte, não existe
e serve apenas para eivar a inocência aos tolos
que o vão olhando com bílis sonhadoras,
enquanto nos constroem os brigues de três mastros
em que, chegada a hora, partiremos.
Até a memória e o amor, até a saudade edulcorada,
sabia-os arrecadas domingueiras, filigranas cujo peso
                                                                                só comove
a consciência histórica do clero regular,
assim como o fado é a receita perfeita para fazer chorar
                                                                               os caritós
e, como é sabido, os caranguejos são animais que andam
                                                                                para o lado.
Comovo-me, isso sim, com o rigor danado e a máscara infantil
com que forjei uma lâmina, fina como folha,
e com ela abri um sulco longitudinal
no cinto de couro que me segura a vida em sociedade,
sulco em que haveria de guardá-la até à hora fratricida
                                                                                do orgasmo,
essa suprema consumação do grito,
vingança da minha infância sobre todas as outras,
mais abrigadas ou expostas aos penhascos, mas outras
e, por isso mesmo, intoleráveis.
Sempre soube, por fim, que os bálsamos fazem parte
da própria possibilidade de nos mantermos vivos,
que são irmãos do sono e dos animais domésticos
e, por isso, amiúde, untei os ombros de amor,
fui ao encontro das algas e pareci morrer.
Contudo, na algibeira direita acariciava
um tição de lenha, que era o próprio diabo –
Lúcifer, o portador da luz.

- Miguel Martins

1 comentário:

Maria Oliveira disse...

Adorei o texto! Sublime!