terça-feira, dezembro 02, 2014

No cretáceo inferior


Apareceram durante a noite
há cem milhões de anos
as primeiras flores de sempre
uma novidade sob o sol
inventada pelas plantas
Seriam aí umas 7 da manhã
quando um mamífero semelhante a um musaranho
que abandonava trôpego a sua toca escura
espreitou com olhos míopes
a primeira flor com
um semblante próximo do espanto
concluindo que não era perigosa

Nos primeiros séculos que se seguiram
as flores começaram a cobrir a terra
brilhavam na Primavera
com uma iridescência reluzente
não apenas um ramalhete mínimo
como as cores no pescoço de um pato-bravo
antes de os patos-bravos existirem
nem como os protectores auriculares de deus
antes de se escrever o Génesis
e apesar de ninguém lá ter estado
para analisar
elas geravam ainda assim uma sensação
à qual não se podia dar um nome
que apenas se podia partilhar
como o luar em águas que correm
conversa de folhas na floresta
as melhores coisas mesmo à frente do nosso nariz
e que não pertencem a ninguém

E um dos primeiros habitantes
um dinossauro ornitópode com um ar cómico
talvez tenha erguido a cabeça
com a boca cheia de ervas gotejantes
e murmurado c'um caraças
ou algo do género
talvez um tricerátopo tenha engolido uma povoação
de flores amarelas
um diplodoco tenha provado o azul
ao longo de vários horizontes
achando-o celestial
e a cor tornou-se comida

Não se tratava de uma glória imóvel
pois as cores pulavam para fora da terra
brilhavam no céu
quando o vento varria grandes campos amarelos
dançavam ondulantes ao sol
centenas de quilómetros de flores azuis
eram escuro veludo à luz das estrelas
e talvez uma criatura anónima
tenha ficado acordada a noite inteira no
meio de mil quilómetros de cor
só para ver como seria
ter todo o roxo azulado que havia
a rebentar-lhe no cérebro
e a alterar tanto o presente como o futuro

Mas nunca se há-de saber
como terá sido
essa primeira vez na terra primordial
em que as abelhas enlouqueceram com a febre dos pólenes
e as sementes voaram para longe de casa
vogando em pequenos pára-quedas brancos
sem dizerem nada aos pais
– nunca se há-de saber
nem mesmo quando alguém receber
a oferta de uma simples rosa
e por trás dessa rosa singular
estiverem os antepassados de todas as rosas
e de todas as flores e de todas as Primaveras
ao longo de cem milhões de anos
de Verão e por instantes
nos seus olhos um eco
da ternura primeira

- Al Purdy
(tradução de Vasco Gato)

Sem comentários: