sexta-feira, dezembro 05, 2014

Manchete


A mulher, de joelhos, lavou a varanda. Lavava. Sabe lá o que é a morte: sabe lavar a varanda: enfia o trapo no balde azul de plástico cheio de água e passa-o depois pelos mosaicos. A morte, sabe lá o que é a morte.
É quase invisível, esta mulher. É a mulher que lava a varanda. Por isso, não sabe o que é a morte. Rasa o chão. É o chão. Quando se levanta, levanta o chão com ela. Um vestido.
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Há quem venha de lugares que são nomes. Só nomes. Cujas cidades são nomes. Só nomes. Nas folhas de um jornal há os lugares de onde vêm as mulheres que lavam as varandas. A pele. O sangue escondido.
São todas diferentes as mortes.
Mas os mortos, esses. Basta olhar em volta as mulheres que lavam as varandas. Basta esperar um pouco.
Ficam para trás, para trás, sem um nome sequer.
Não é a vida que é uma questão de tempo: é a morte.
O morto.

(Rui Nunes, "Nocturno Europeu", Relógio d'Água)

Esta é a notícia que faria hoje a manchete do Jornal. O diário mais necessário. Um que entreviste o mundo, o retrate nos ângulos insistentes, brutais, imutáveis, que o investigue, lhe faça perguntas. Mas o público deu-lhe as costas para se entregar a uma obsessão emocional com a sua própria ingenuidade, assistindo de manhã à noite a desenhos animados, uma bonecada que não tem verdadeiramente outra escolha que não deixar-se corromper. De um jeito ou de outro. Ou roubam para si mesmos, ou, mais idiotas, dão a roubar a outros. Bem aconselhado, na próxima carta do presídio o nosso ex devia era escrever "Ide-vos foder. Ide todos apanhar fundamente nessas peidas". Queriam o quê? Heróis do serviço público? Que se sujeitassem a ser julgados por isto? Os heróis reformam-se hoje muito cedo, ainda na preparatória perante professores atrasados mentais e a pequena violência sistemática das avaliações. Levam as mãos nos bolsos para não estrangular ninguém. Encolhem-se, distraem-se, calam-se para não gritar-nos nas trombas enfadonhas:

You common cry of curs! whose breath I hate
As reek o' the rotten fens, whose loves I prize
As the dead carcasses of unburied men
That do corrupt my air, I banish you;
And here remain with your uncertainty!
Let every feeble rumour shake your hearts!
Your enemies, with nodding of their plumes,
Fan you into despair! Have the power still
To banish your defenders; till at length
Your ignorance, which finds not till it feels,
Making not reservation of yourselves,
Still your own foes, deliver you as most
Abated captives to some nation
That won you without blows! Despising,
For you, the city, thus I turn my back:
There is a world elsewhere.

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