quarta-feira, novembro 19, 2014

Do além


Numa das últimas noites, um grupo de rapazes
disparou de um carro e mataram-lhe o gato.
Matar um gato não é nenhuma façanha, os jornais nem dão nota,
mas esta notícia destinada a uma só pessoa,
no máximo a duas ou três pessoas, é também um idioma
para se dizerem coisas importantes. Um gato
pode contemplar, com os olhos fosforescentes que já se sabe,
como uma rapariga se despe para fazer amor, e se deita para esquecer
(se esquecer fosse possível) na penumbra e num olor indelével.
Matar essa estranha testemunha
assim, a partir de um carro ébrio, é também escrever
um insignificante capítulo, mas um capítulo no fim de contas,
na história de um país, na história de um amor
onde se confundem batalhas e carícias, datas e suspiros,
como se além do amor e além da história
houvesse outro amor, houvesse outra história que fosse englobando com igual indiferença
ou com igual paixão gatos e países, raparigas e povoados,
e os contemplasse a todos com impassíveis olhos fosforescentes.

- Roberto Fernández Retamar

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