domingo, novembro 09, 2014

Algumas histórias do fim




[Texto de Pedro Meneses]


Acabamentos de primeira. Os do livro, ou caderno, pois. Um trabalho gráfico belíssimo, uma peça de artesanato que a Eclusa burilou com esmero. Começo por aqui, o mais óbvio para quem toca este pequeno caderno com acabamentos de primeira. Mas de começos já chega, as pequenas memórias e reflexões de Acabamentos de primeira falam-nos daquilo que acaba e da arte difícil de conseguir os tais bons acabamentos. De um lado, o inexorável, dito por Rui Caeiro de forma elíptica, que tão bem lhe assenta; do outro, a arte de minimização de danos, de colocar um ponto final no infinito fim das coisas, que terá o seu quê de prático que a delicátesse repele. Par delicátesse/ j’ai perdu ma vie, parece ecoar de alguma torre mais alta que o rumo ao vazio dos dias. Deveríamos ter em conta ainda como a memória – sobretudo a má memória, aquela que, Lobo Antunes dixit, se lembra de tudo – é um sério obstáculo ao aperfeiçoamento dessa arte de acabar. Teríamos de recorrer ao mestre – esse sim, mestre – homónimo, Alberto por seu turno, para aprendermos a nascer a cada dia, como se a memória se pudesse apagar simplesmente como se apaga a de uma máquina. A «lição» de humildade está precisamente aqui, no reconhecimento de que somos construídos e devorados pelo tempo, que não vemos apenas, mas que o nosso olhar é – inexoravelmente – filtrado pelo tempo. A prorrogação indefinida do fim é, em rigor, algo que não depende da nossa vontade, porque a nossa memória se vai construindo com uma limitada participação nossa, apesar de uma eventual vigilância zelosa. Torna-se difícil conceber maior ficção que a nossa memória. Portanto, quanto mais biográfico mais estranho. Mas ouçamos Rui Caeiro: «Se há coisa que não consegui na vida (e poucas foram as que consegui, há que reconhecê-lo) foi pôr um fim às coisas em que me meti. Ou em que me meteram, ou em que me vi metido.»
Vou fazer um esforço e tentar não terminar o meu comentário já aqui. Os acabamentos amorosos são essas histórias aqui evocadas. Das despedidas, esses equívocos pontos finais. Correndo o risco de acelerar um pouco as coisas, diria que, como uma substância viva, perduram esses momentos vividos, um incomportável excesso – a vida – que na memória encontra um abrigo precário, mas ainda assim abrigo: «Por muito acabadas que estejam, por muito mirradas ou falhadas que fossem, por intenso ou irrelevante que tivesse sido o seu desfecho, nada a fazer, as histórias morrem, e não morrem, tal como ambíguas, viveram e não viveram. E se depois de mortas vivem ainda, de que vivem então. De vida, não encontro outra palavra. De vida: essa coisa estranha e única, que não lhes sobrou, mas um dia tiveram.» Ocorre-me uma possível definição de ser humano: a espécie que não cessa de viver aquilo que já viveu, consciente do excesso vital que a vida é, que a fragilidade de um corpo e errância de uma memória dificilmente comportam. Um excesso que preside aos avanços amorosos e que persiste acabados os relacionamentos, uma espécie de vida que persiste na morte. Podemos atirar ao ar algumas palavras: libido, lamella, desejo, corpo. Muitos usarão estas palavras, haverá outras, mas Rui Caeiro diz «vida», reconhecendo contudo a dificuldade de dizê-lo, e deixando latente a fundamental desarticulação entre o ser vivo e a linguagem, entre a natureza e a cultura. Aliás, a paixão nasce justamente desta desarticulação, mas não só – a incapacidade de lhes dar um acabamento de primeira.
Este excesso que persiste pode chamar-se também fim da história. O fim da história – não cedamos à tentação de falar de política, hipótese que Rui Caeiro nunca coloca – continua infindavelmente: «À míngua ou à falta de história – para viver, para compartilhar, ou pura e simplesmente contar – o fim da história, substituindo-se-lhe, incha-se e alimenta-se de si mesmo, autofágico.» Vivemos sucessivos fins das histórias, ou antes os fins das histórias vivem e somos vividos por eles. É este o ponto: o de histórias inapelavelmente sem fim, cuja dor também perdura: «E a dor? Bem, a dor está lá. A dor está sempre lá.» Rui Caeiro conta algumas dessas histórias de fim e sem fim. São histórias como estas que nos definem. Somos o resultado de um trabalho impreciso da memória, somos sujeitos porque racionalizamos o nosso excesso vital como podemos: «De algum modo, a minha vida é a soma desses desfechos, desses fins que eu fui gerando ou que me geraram. Se me geraram. Nascidos como que por geração espontânea, ou do informe de mim. Ou do inferno de mim.» O pronome pessoal, o inferno. Os pronomes pessoais são convenções, não têm propriamente nenhum significado, são deícticos, permitem localizar no espaço alguém durante uma conversação. Que significado, que conteúdo propriamente tem «eu» quando o digo?
Não farei o resumo das histórias que Rui Caeiro partilha, que dizem o fundamental desacerto humano com o mundo e com os outros. Sem grande melancolia, às vezes com alguma secura, outras com volúpia. As despedidas de que no fundo as histórias falam nunca são derradeiras, o que já era previsível. São no entanto marcantes, tornaram-se pregas na carne. Os abraços de despedida podem conter aquilo que falhou: «Num abraço pode pôr-se muita coisa para além de um simples adeus. Também lá cabe tudo aquilo que não se teve a coragem de dizer ou fazer.» E é das histórias o terem um fim e é a nossa história permitir «às coisas o terem sido», como escreveu Homero na Ilíada. Estas histórias de Acabamentos de primeira dizem Rui Caeiro mas são simultaneamente intemporais. Constituem outrossim, e cito desta feita versos de Rui Miguel Ribeiro, uma «aprendizagem / do que se arruína». Dizem é claro muito mais do que isto, dizem por exemplo até da forma recatada de amar comum durante o salazarismo. Dentre todas as histórias, cito uma pela sua particular pungência e que nem vincula propriamente Rui Caeiro: «Sobre a questão de viver melhor ou pior o fim dos seus casos sentimentais – de forma mais ou menos razoável, digamos – ocorre-me um diálogo antigo com a Branca. Ela andava a tratar-se de uma depressão grave, na sequência do abandono a que o pai do filho comum votara ambos.
– Como tens passado?, pergunto-lhe.
– Bem, responde-me, pouco loquaz como sempre.
– Já não sentes falta dele?
– Não.
Mas acrescenta, após uma pequena pausa:
– Nem dele, nem de nada.»

Este episódio de destituição subjectiva, de perda dos vínculos e de abalo das coordenadas existenciais, indicia um vazio, a falta de uma história que permita racionalizar o que aconteceu. Tal diálogo evoca-me um outro, proveniente de A lição de alemão de Siegfried Lenz. Num momento fulcral do romance, uma mulher recebe o marido vindo da guerra, deficiente, sem pernas. Com a ajuda de dois homens, a mulher põe o marido na carroça. Este «deixara tudo entregue à mulher e estava de acordo com tudo o que ela aceitasse ou recusasse», escreve o narrador. Os dois homens ficam depois a observar o casal que ia na carroça à frente, sem trocar uma palavra: «Ainda não, não dizem uma palavra um ao outro». «Porquê?», pergunta um. Porque vêem «o suficiente», responde o outro. Vêem o suficiente, para quê falar? Ou escrever?


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