terça-feira, outubro 07, 2014


Parece-me que a literatura, são récitas que falam de homens, dos seus pensamentos e dos seus feitos, qualquer coisa como uma antropologia anárquica regida no entanto pela intuição, a fuga do tempo e o medo da morte. Descrever, por vezes compreender o que se passa, e fixá-lo para sempre. Parece-me também que essa literatura engendrou, muito especialmente no século XX, filhas matricidas a que convencionámos chamar ciências humanas. Essas observações, essas inspirações de escritores tornaram-se, ao estalarem, ao disseminarem-se, disciplinas. As anedotas, mesmo as mais profundas, já não conseguem enfrentar um caos derivado do facto da abundância de estruturas. Quero dizer que já não são exemplares, e não o serão nunca mais. Aceitamo-las doravante com uma espécie de nostalgia misturada com aborrecimento, pelo que elas são: justamente anedotas, pequenas moralidades, que, para sobreviverem, fingem ainda acreditar em coisas em desuso como a luta do Bem e do Mal, a permanência do Amor, a força da sua própria subversão ingénua. Que resta à literatura? A descrição das coisas tendo em vista um uso documentário? O fascínio face ao seu próprio significante, a escrita? A angústia face a essa crescente dificuldade de escrever, pretexto outrora fora de texto que no presente se meteu a engendrar obras inteiras? Talvez a ficção seja o último discurso da desordem, face às sucessivas conquistas do método. As suas fontes vivas, o poder, o sexo, e até a própria morte, foram escrupulosamente canalizadas pelas disciplinas com todo o rigor e toda a audácia desejáveis. Irei mesmo ao ponto de dizer que o que lhe resta da desordem se limita à pura ideossincrasia, e (...) não inventa nada senão na medida em que vire as costas à experiência partilhada, ao exemplar, e talvez mesmo ao comunicável, o que é, confessêmo-lo, uma espécie de suicídio pelo menos do ponto de vista do comércio, em todo o sentido da palavra. Vejo-o nessa empresa como um homem que tem um fim, e que se mete a caminho. Para fazer essa viagem escolhe o mais incerto dos veículos, o mais perigoso dos itinerários, o que implica um grande número de peripécias. Ao chegar, apercebe-se que já não tem fim, ou pior, que nunca o teve. Pode então ter duas reacções. Ou fica desesperado e amaldiçoa a sua viagem inutilmente perigosa. Ou diz-se que o fim era a própria viagem, o que justifica à posteriori a sua escolha absurda, já que a maior imprudência se torna então o maior prazer. Essa viagem imaginária, repetida até ao infinito da ficção, é sem dúvida a única forma de protesto duradoiro que o espírito inventou contra o vazio e a morte.
 
- Michel Rio
(tradução de Miguel Martins)

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