sexta-feira, outubro 31, 2014

O feitiço do glaciar


Gelo — ilhas arquipélagos continentes
vastidões de gelo
prolongando-se para norte e fazendo o mar refém
torcendo-se agitadamente na hipnose da lua
— e o degelo vai escoando da parte sul do glaciar
onde um mar mais pequeno reflecte o seu monstruoso pai
a oriente e ocidente um fogo-de-santelmo azul
alarga-se pela escuridão adentro
E ano após ano o gelo retrocede
um centímetro ou dez pela medida do sol
gerando criaturas sepultadas que derretem devagar
até que o gelo as solta
e elas tombam da beira-culatra
recuperada a terra tremem e estremecem
parecem dar um passo para então caírem de joelhos
sofrendo uma dupla vida e uma dupla morte
enquanto o gelo vai ressoando com um cântico mudo

À medida que o sol se intensifica uma faixa esguia de verde
pinta-se arrevesadamente ao fundo do glaciar
e os rostos vegetais desviam-se do frio
— quando chegam as chuvas cem quilómetros de gelo
e mil quilómetros de céu aliam-se
nesse ruidoso escoar para um rio que segue para sul
um som que ninguém escuta
— apenas um caçador errante
escorraçado da sua tribo
um homem com demónios no coração
que inesperadamente não se sente em casa
nas grandes divisões celestes da terra

O tempo acelera e abranda
avança no vulto cambiante da quietude
acelerando para plantar uma floresta
abrandando para acolher um pássaro
à espera do primeiro animal
enquanto o glaciar finge que não está ali
embora vá cagando morenas laterais
— um homem trigueiro e uma mulher trigueira
olhos diurnos a espreitar olhos nocturnos
dos animais lá fora
a gruta ígnea de luz vermelha
por entre a porta a preto e branco
onde o medo aguarda

Não chegues palavras ao que não possui nome
nem sintas com os olhos o lugar das pedras errantes
o animal que caçamos não deve ser pronunciado
o seu cheiro flutua sob o vento
o seu rosto recorda os nossos rostos

- Al Purdy
(tradução de Vasco Gato)

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