sexta-feira, setembro 26, 2014

Olfacto


 
Levo-o através do tremor sem forma e sem cor da poeira morta. O ar assombra-se de espíritos invisíveis mas não imateriais: um pó ténue ascende dos ossos em eflúvios e precede-me como a luminosa coluna mística. As dobras da toalha em que o levo sacodem o ar com o seu simum; e os tufões de areia exasperados reviram-se e sufocam-me. Os passos ritmados sobre as escadas sem fim dão ritmo à dança das areias; e os átomos íncubus vêm tamborilar as minhas narinas a intervalos regulares, como o fluxo de uma maré, e corroem-me com a acre queimadura do amoníaco. É o acompanhamento surdo de uma marcha indiana; e balançado na ponta dos meus braços inconscientes, o Feto acocorado encolhe-se e adormece, embalado pelo barulho dos dromedários.
A árida poeira seca a garganta; devo ter bebido há muito tempo, mesmo há muito tempo, um odre cheio a longos tragos. Pois ainda tenho comigo este odre engelhado, prostrado e endurecido nas minhas mãos; e o bafio das coisas dessecadas dele emana. Ao menos algum ar, o ar húmido de que me priva o céu pesado destas abóbadas impenetráveis! E a janela vira o seu leme no mar de óleo negro. Tudo está negro, os astros fugiram irremediavelmente do céu, e o negro é absoluto por toda a parte, sem qualquer marulho glauco. 

- Alfred Jarry
in Os Cinco Sentidos, Edição 100 Cabeças / Landscapes d'Antanho


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