terça-feira, setembro 16, 2014

Habitante da dor


Não deixes o cuidado de governar teu coração a essas ternuras, pai e mãe do outono, a quem emprestam o plácido andar e a sua afável agonia. Os olhos são precoces em rugas. O sofrimento conhece poucas palavras. Opta por deitar-te sem fardo: sonharás com o dia seguinte e o leito ser-te-á leve. Sonharás que a tua casa já não tem vidraças. Estás impaciente por unir-te ao vento, ao vento que numa só noite percorre um ano. Outros cantarão a incorporação melodiosa, a carne que personifica apenas a feitiçaria da ampulheta. Condenarás a gratidão que se repete. Mais tarde hão-de identificar-te com qualquer gigante desagregado, senhor do impossível.
Contudo.
Não fizeste mais do que acrescentar o peso da tua noite. Regressaste à pesca nas muralhas, à canícula sem verão. Estás furioso com teu amor no centro de uma inteligência que enlouquece. Sonhas com a casa perfeita que jamais verás erguer. Para quando a colheita do abismo? Mas tu vazaste os olhos do leão. Julgaste ver passar a beleza sobre alfazema negra...
Que foi que te levantou outra vez um pouco mais alto sem te convencer?
Nenhum cerco é puro.

- René Char
(tradução de Eugénio de Andrade)

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