terça-feira, agosto 26, 2014


Parece que se morre por aí. Ouve-se falar muitos, alguns bem, certamente, outros o que lhes dá, que é pouco, e ainda assim se faz ouvir. Barulho, faz uma barulheira louca este século novo, bruto, fução, rato, ridículo, elaborado, espantoso, num contraste enérgico e violento ou até, mais raramente, encantatório. É preciso ser-se muito frio, muito burro para um tipo não se comover. Ficar a comer a esparguete infinita da tacinha do umbigo parece palhaçada, mas dá-se que há quem se ache fonte de luz assim, enconando fora da cona da mãe. É preciso que a gente se vá pondo dos milhentos lados desta questão que nós temos todos, em comum até um incerto ponto. Mas morrer, que facto bicudo é esse para quem fica insiste desse lado mais fraco e sentimental das coisas. Então, um tipo, agora eu ou tu, por efeito perverso e limitado desta pôrra, vamos e lemos num blog uma nota sobre um poeta que morreu num dos cus de judas por onde a vida se desmanda, porque afinal mesmo na capital mais olimpesca deste lado do desentendimento um gajo acha-se sempre a um passo do absoluto vazio. Aqui como em toda a parte morre-se muito mal. De resto, o mais é retórica e ingenuidade. E depois há uma certa paz e um sorriso sem destino ou destinatário. Mas virem-se uns vingar nos outros, usar a morte ainda fresca para se lhe porem às cavalitas e fazerem uma última ronda pelos bairros mais a jeito, é peso a mais para sepultar um morto. Já nem carregam o caixão, sentam-se-lhe em cima e vão-se até ao buraco de cachimbo na beiçalha a reclamar que qualquer caminho feito é sempre pouca terra. Depois dão um salto ao lado, cospem uma flor e mal ouvem as pazadas já vão pelos fundos da vida a mandar tudo ao caralho enquanto se reclamam impérios. O que se pode dizer a estes coleccionadores de ossos que usam do solilóquio não para os "ser ou não ser" da vida mas para andarem a xingar nas traseiras dos dias e a dizer que o mundo não presta porque não tem a paciência para mandar cantar todos os cegos que lhe enchem as praças e quintais. Que puta de banda que não mais acaba, e agora vêm-se aqui, limpam-se às cortinas e dizem-se donos disto aqui até ao que fica além. Não há, como podia haver, paciência. O apego é coisa tão séria como disparatada. Já o dizia o Assis Pacheco: "Gostarias que de ti ficasse (mas qual?) uma memória. Em todo o caso não a forces." Então porquê essa conversa dos que morrem contra os que ficam. A cada um o seu dia, a hora de retirar-se. Sem nem deixar nota colada no frigorífico nalguns casos, noutros deixando obras vastas, bibliotecas inteiras. Mas e depois? Há génio?, há com certeza (e felizmente). Mas vamos ter de aturá-los a todos? Morreu um hoje (ou não), e agora? É suposto que se montasse um piquete de greve às portas do céu? Não deixar que nenhum outro fure? Que merda de vida é essa que só serve de ilustração a uns que nem choram nem mudam o seu tom mas juntam tudo no iracundo obituário com que se reclamam mais que vivos, deuses. Não há paciência. Saibamos morrer nós e deixar que se morra, na paz possível, sem acusar o mundo de desatenções, de desafectos. Na hora de alguém morrer, não vale a pena o estardalhaço, no fim só fica um pouco e essa é a medida certa, que deve e pode ficar. De tudo fica um pouco. Um pouco.

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.


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