segunda-feira, junho 23, 2014



A NOVA DIREITA



“Os Intelectuais de Direita Estão a Sair do Armário” é o título de uma reportagem de Paulo Moura publicada na Revista 2, do Público, no passado domingo. Tal título veicula a suposição de que o pensamento de direita foi reprimido ou  levado a um regime de auto-limitação, tendo finalmente chegado o momento da sua libertação e afirmação pública. Pensar assim é um equívoco. A direita apresentada na reportagem não coincide com a direita dura, tradicional, que se sucedeu sob várias formas ao longo do século XX (essa nem precisou de se esconder no armário porque morreu de morte natural). Trata-se de uma nova direita, que emergiu publicamente em Portugal apenas um pouco mais tarde que noutros sítios, como acontece geralmente com muitas outras coisas, mas sem ter de transpor quaisquer obstáculos. A sua emergência dá-se sobre as ruínas da esquerda, quando todo o Ocidente virou à direita e se tornou óbvio que grande parte dos objectivos da esquerda não se conseguiu impor e muitas das suas laboriosas conquistas recuam a grande velocidade, como mostrou um dos primeiros analisadores desta Neodestra, o italiano Raffaele Simone, num livro que teve um enorme eco, mesmo fora de Itália: Il mostro mite. Perché l’ Occidente non va a sinistra (“O monstro brando. Porque é que o Ocidente não segue para a esquerda”). A tese de Raffaele Simone - retomando, aliás, ideias que vêm de longe - é a de que o mundo é naturalmente de direita e, por isso, esta, para existir, só precisa de preservar uma posição “naturalista”, enquanto a esquerda é um artifício, uma construção abstracta. As esperanças que ela anuncia representam um resultado contra natura, por  isso têm de ser objecto de laboriosa construção política e teórica, projectando-se num horizonte utópico. A esquerda está sempre do lado do devir, da criação de um direito; a direita naturalista preserva direitos constituídos e responde a determinações realistas. Esta nova direita é, pura e simplesmente, um realismo. Por isso é que não precisa de grandes elaborações teóricas e a sua afirmação, como mostra muito bem a reportagem de Paulo Moura e os depoimentos que recolhe (nomeadamente, os de António Araújo) faz-se privilegiadamente nos media. Esse é o seu ambiente “natural”: o da comunicação, o do divertimento, o da burguesia como classe universal. Ela não precisa de construir um pensamento, só precisa de seguir uma cultura difusa e dispersa, não interromper o entretenimento, alimentar o conformismo dos media, seguir com eficácia a estratégia da sedução, aproveitar a onda de desculturalização da política que a esquerda superlight decidiu surfar. Em suma, esta nova direita é a subjectividade desse “monstro brando” (como lhe chama Simone), tal como a soberania era, para Hobbes, a alma do Leviathan. Esta nova direita confunde-se de tal modo com um realismo que um dos seus representantes com grande destaque na reportagem de Paulo Moura é alguém como Henrique Raposo. Ele é mais do que realista, é hiperrealista; é mais do que naturalista, é a ausência de qualquer pensamento para não impedir o naturalismo; não precisa de ter um discurso, basta-lhe exibir um estilo, uma caricatura. Hoje, a questão verdadeiramente pertinente não é verificar, com algum  equívoco, que os intelectuais de direita saíram do armário; é perceber que muito dos intelectuais que se afirmam de esquerda e falam em nome dela se converteram a essa cultura difusa da nova direita e aceitaram preencher as quotas de mediatização que esta lhe concede, aceitando um papel protocolar de “representação”. Também eles glorificam o novo realismo.


- António Guerreiro
in Ípsilon (20.06.2014)

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